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E num dia qualquer

 

67 E NUM DIA QUALQUER de março 68, a correspondência de Editora paulista me notifica sobre os livros do Dr. Arnóbio Franco de Melo. Acerto comercial, Professor Nestor Leoni de Melo, era preciso. Quanto mais urgente, melhor, prezado senhor.

      Dei uma chegada a São Paulo.

Pensava na tradução de Tocqueville e no vade-mécum ao tempo de meu primo vivendo ali recém-casado. Talvez pretendessem reeditá-los, coisas de Direito.

      O Editor recebeu-me na mesma hora.

     Agradecia a presteza de meu atendimento. Desculpou-se  – imperdoável!  – pela demora no caso. É que o escritor havia submetido à Casa dois originais. Tinham sido examinados e aprovados. Com a programação do ano fechada, não os editara logo. Um belo dia recebera telefonema dele para reter a publicação. Explicara Dr. Arnóbio: estava publicando artigos políticos e não desejava misturar literatura com ação social...

      – Ação! foi o demônio de meu primo.

    ... ora como ele nem ninguém muito tempo não buscasse notícias, tinham ficado os dois livros esquecidos. E agora que vou erguendo a cabeça de dificuldades grandes trazidas pelo Golpe de 64 estou disposto a pôr os dois títulos na rua.

       – Que originais são esses, senhor, que eu desconheço?

       Pelo interfone mandou que os trouxessem.

   Perguntei-lhe  se conhecera pessoalmente Arnóbio. De passagem. lá ia tempo, quando ele morara em São Paulo. Melhormente quando lhe apresentara os originais. Pelo Raimundo Uchôa da Galaxia Editora havia pouco fora informado de sua morte. Tal notícia o levara às pastas verdes.  Mas estava intrigado  – Não sabia eu dos romances do parente?

      Vieram as tais pastas verdes. Atirei-me curioso ao exame dos datiloscritos. Ora ali estavam nada menos do que as obras de ficção de Arno! A história de Olívia e a do jovem casal de pintores.

      E referi-lhe que alguns anos de fato tivera conhecimento de umas tentativas dele, ignorava porém que as tivesse concretizado. Após críticas que eu e outros fizéramos, o assunto morrera. Entendia eu agora o que não entendera então. Dissera em meio a uma discussão que um dia nos surpreenderia a todos. Ali estava a imensa surpresa. E eu que viera à capital paulista pensando em dois outros livros, esses de advogado.

      – Vi-os, muito úteis.

     – A par da surpresa, tão grata para mim, quero agradecer a sua atenção em toda esta aventura dos dois romances.

      – Meu professor Nestor, isso faz parte do ofício. Pode a Casa lançá-los a intervalo regular um do outro, pois o mercado...

 

      Nisto, entra uma jovem de suéter, calça jeans, todo jeito de universitária. Apresentou-nos.

      Simpática, cabelos soltos, falou que o pai, ele só lia os seus editados depois de impressos, que excepcionalmente lera aqueles. Levara-os para uns dias de lazer na fazenda e nem ela nem ele tinham conseguido largá-los, apesar das trezentas laudas de um e duzentas do outro. Aliás queria relê-los, certa que o faria, pois detectara em ambos vários níveis de leitura. O pai lhe dissera um pouco do autor. Indagou particularidades, era curiosa de pessoas, principalmente escritores.

     Havíamos sentado. Acendeu um cigarro e eu satisfiz-lhe a curiosidade. Parecia ouvir com os negros olhos falantes.

     – Vejo que era alguém. Pessoa que nem ele está exposta a todas as ameaças dos medíocres.

    Fora ativista política, quando se podia ainda ser ativista política. Em repressões de passeata conhecera a violência policial, o avanço de cães. O pai a levara para a fazenda, ela e uma colega, e as retivera lá de vigia à vista. Mas o velho era legal. O primo, coitado! é que andava penando pela Holanda.

        Tragou o cigarro com evidente prazer.

    Eles  souberam  fazer a propaganda contra, Professor. Forjaram imagens distorcidas dentro do figurino golpista, levaram a burguesia burra à paranoia. O Senhor, que está por dentro como professor de História, por que não escreve sobre? Vejo aí um enorme tema.

        – Ouço uma sugestão inteligente.

      – Vivenciamos neste 1968, aqui e lá fora, um ano de forte ebulição social muito promissora. O aumento de desemprego e a elevação do custo de vida fazem surgir essa onda de revolta. Apesar da repressão que continua, há no fundo grandes esperanças.

        – Se não vier por aí um Ato Institucional nº 5.

       – Então,  Professor,  é o fim de vez  e – esmagou o cigarro no cinzeiro.

      O pai:  Oh,  dentro  em pouco estamos todos de coração novo! Olhem o nosso Dr. Zerbine prometendo o primeiro transplante no Brasil.

        Ela: Como seu primo, o romancista, merecia ter sobrevivido e participar deste momento, não é mesmo?

        – Assim julgarão todos os amigos dele.

       E  cumprimentei  tão comunicativa criatura declarando que me sentia deveras feliz por ter encontrado a leitora em quem decerto o romancista cogitara ao escrever os dois livros.      

     – Obrigada.  Mas  estou  convicta de que outros o irão entender. Em ambos ele deslancha de maneira, digamos, crônica poética, embora já de modo a motivar. No instante seguinte porém lança mão de ardis proibindo a apreensão dos signos habituais. Isso obriga o fulaninho (girou o indicador) a usar a cabeça. E o gratificante é constatar que ali existe, como falei, mais de um nível de leitura. Essa articulada continuidade de invenção referenciada mantém o foco de interesses o tempo todo, o autor jamais perde o pique.

      O pai: Kátia, qu'é isso? Assim, filha, você parece querer dar uma aula ao Professor.

       Ela riu juvenilmente, Rimos os três.

      – Até  parece!  Desculpe, Professor. Tenho que ir. Olha, pai, só passei aqui pra lembrar, hém? Hoje à noite, às nove horas.

       – Certo.

       – Tchau pros que ficam! e nos beijou.

       – Bem, vamos ao que importa, disse o Editor.

    Convidou-me, se eu quisesse, a elaborar as respectivas "orelhas". Uma condição, por favor! não fizesse referência à conjuntura política. Havia já sido bastante incomodado pelo Poder, todos os que editavam estavam sob o regime de autocensura. Ia esquecendo... Arranjasse um bom retrato do autor. Tinha um novo capista, veríamos com que cara bonita ia sair A Fonte Luminosa. Eu estava convidado a comparecer com outros naturalmente ao lançamento. Telegrafaria.

 

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