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Não haviam tocado nos papéis

 

66 PAÍS DOS FATOS CONSUMADOS,  veio  o  Golpe  se consolidando.

     Metade da imprensa dissera sim, a outra não, ambas em forma comportada. Os das letras glosaram e glosam com epigramas, espirituosas crônicas, pequenas cobranças e a vida continua...

       Os donos do poder afastaram sem mais os paisanos aliados e a farda vai-se entredevorando pelos primeiros lugares. Já não se diz Golpe, é Revolução de 64. O povo, depois dos primeiros sustos, retorna aos hábitos, ao ganha-pão suado e há futebol no Maracanã.

      Os que em tempo escaparam para o estrangeiro enquanto outros foram massacrados, penam por lá ou acomodaram-se a lecionar. Os que ficaram, grande parte da  intelligentsia agora apagou-se, depois da preocupação enorme no início de descobrir se estavam no Listão pra cassar, demitir, pra – "Amar o Brasil ou deixá-lo!"

      Nunca esquecido em Ouro Preto o 21 de Abril cada ano vai passando numa comemoração discreta e chocha. Meu vizinho, descendente do Protomártir, que há trinta e tantos anos não perdia a homenagem, torna das montanhas de Minas afrontado e defraudado. Ao encaminhar-se para o palanque oficial, um polícia a paisana: Só sobe os da farda. O Sr. é? Ele, que é altivo e violento, fechando o paletó: Hem? E se for? Barraram o acesso do velhinho que desta vez teve de guardar o seu patriótico discurso, anualmente retocado, peça oratória.

       Para agravar a mágoa do orador frustrado, na Rodoviária um rapazola disse-lhe que o Tiradentes fora substituído na execução por um criminoso comum, obra da Maçonaria. Tinha lido aquilo numa revista.

       O bom velho fecha os olhos quando fala.

    – Ah,  Nestor,  se eles tivessem restabelecido a ordem, recolhido as baionetas e entregue o poder aos civis, teriam sido dignos de aplauso. Eu, desta data em diante, cerro fileira na Oposição.

     – Braavos! É o lugar de um republicano histórico, Sr. Silva Xavier.

 

    Lembro  minha  assistente,  marcando  o ponto sempre atrasada, trazendo cada manhã o jornal dobrado dentro da bolsa, entusiasmada com seus cronistas que a Censura ia ignorando pois aquilo não passava de "literatura".

     A risada saudável da carioca: Já que subvivemos, Mestre, vamos rir! Televisão está de não se aguentar dois minutos. Olha Fulano, comparece hoje num dos melhores dias.

     Outra  manhã  era  a crônica de Eduardo Rios, que ela conhecia pessoalmente, de quem se orgulhava de ser admiradora e amiga: Edu está ótimo nas três notinhas do Dia-a-Dia. Lê como ele goza a descoberta de documentos com plano estratégico para... atirar pastelões na cara de pessoas gradas.

      Eu lhe falava: Vejo que você abandonou o projeto do livro, Graça. Ela: Negativo. Deixa a poeira assentar e sacudo meu coquetel Molotov.

        Inesperadamente, Graça sumira.

        Do Sr. Silva Xavier este o cumprimento quase diário:

        – Que me diz, Professor?

       O desgosto consome a alma do velho, não se conforma com o rumo dos acontecimentos. Apenas me vê, corre para mim, querendo saber novidades dos bastidores (como se eu as tivesse) pois para ele tudo que se publica (mas lê todos os jornais) é balela.

       – Toda gente sonhava com dias melhores. Onde? Quando?, meu Nestor? E vão-se os dias...

 

     Já no primeiríssimo aniversário de 31 de março, com a maioria que no primeiro momento havia batido palmas agora decepcionada, a boa Graça, que não vi mais, respira longe.

     Em tempo publicou o panfleto. Sem bilhete, sem nada, encontrei dois exemplares para mim no escaninho da portaria de meu edifício.

         Mistura de fatos reais e de lances risíveis. Mais que simples panfleto, discorre com reflexão lúcida, inteligente, entre sério e grotesco, no fundo mais sério que grotesco, sob as expectativas frustradas, sobre o que depois de tanta violência e arbitrariedade continuará a não ser feito: coisa alguma.

      Lança mão de tipos – Cascata, Sopapo, Bolha, Carcará, Tacão – e vai sob esses qualificativos num desfile de parada. Fácil identificá-los... Claro, nem podia faltar excessos, os deliciosos excessos femininos.

E DEU NO QUE DEU, PAISANO!

é de ler-se até o fim, desde a nota inicial –

Onde estão? Ninguém sabe, ninguém vê. Mas

listas e atos continuam.

Ninguém os identifica na praça do Povo...

e vai por aí.

 

      A brochurazinha, saída de editora fictícia, foi de imediato apreendida, o nome dela riscado da Universidade. A filha de militares escapuliu pra França e lá fez-se na primeira hora taxista em Paris.

        A boa Graça, a ordem pacífica das coisas! Conheceu numa "corrida" certo tenente que acabava de ser transferido para a Provença, lá se foi para Avignon com o novo amado...

Em carta recente desta ensolarada província me anuncia que breve será mãe e que, não fossem as lembranças do que vocês todos, queridos, estão curtindo aí se diria la plus fortunée personne du monde.

 

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