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Não haviam tocado nos papéis

 

64 ATINGIDO pela tragédia que o feria pela segunda vez na vida, Tio Justo não viera ao sepultamento do filho. Veio, com Letícia e Monsenhor Brasil, que celebrou a missa de sétimo dia na Candelária.

       À saída, nosso amigo colunista social aproximou-se de mim recomendando que não deixássemos de ver a sua coluna dia seguinte, domingo, no jornal. Desculpou-se: no pequeno espaço de que dispunha, não pudera fazer algo mais satisfatório, como gostaria.

 

        Zózimo (do Amaral) escrevia 

  Arno  advogado  vitorioso, arquiteto criativo, conferencista e causeur, centro das rodas de que participava a abrilhantar as suas intervenções sem buscar impressionar, Arno batalhador nos confrontos que a vida lhe armava, homem do mundo e da família – esse o tesouro que desapareceu no momento em que Arnóbio Franco de Melo cerrou há uma semana os olhos.

     No curso de uma vida breve ele fez mais do que um círculo de fiéis amigos, fez enormes admirações. Não havia reunião ou simples formação de roda em mesa de bar que a chegada dele não fosse recebida com vivo prazer.

   Era a garantia de que a partir daquele instante a troca de ideias ganharia mais brilho. Muito mais humor e inteligência: sua presença acordando nos outros o melhor da individualidade de cada um.

 

  Adotava-se   imediatamente postura atenta e curiosa. Além de sua simpatia, irradiava a riqueza de uma singularíssima personalidade. Sabia ser ferino quando convinha, sagaz na apreciação de uma intrincada questão, rápido na construção de uma linha de raciocínio, exato na avaliação e preciso nas conclusões a que chegava ou propunha.

   Em  entrevista   que  me concedeu há anos, à pergunta qual era para ele o cúmulo da miséria, respondeu: não saber admirar; e quanto à maior desgraça, esta: perder o sentido lírico da vida. Autêntico e espontâneo. Esteta e ético. – Arno era assim. 

  Para ele, tudo que fosse excepcional valia a pena. Indispensável como árbitro, continuará a sê-lo na saudade incomensurável de seus amigos.

 

Zózimo 

       Numa segunda-feira, oito dias depois, Soraya decidiu voltar para o apartamento da Urca. Margarida acompanhou-a. Foi de lá que minha mulher me telefonou para a Universidade. Soraya encontrara a carta.

       – Onde?

      – Dentro de um livro. Só vendo a alegria dela. Apertou-a ao peito como um tesouro. A carta estava fechada, Nestor! Decerto Arno adivinhou o conteúdo, preferiu não abrir.

    Ia  dizer  mais.  Interrompeu-se  abruptamente. Soraya entrava na sala, eu queria dar uma palavra com ela?

       – Sim.

      Declarei-lhe  a  minha admiração em ver a firmeza com que se vinha comportando.

     – Só  eu  sei  o caos que estou por dentro, Nestor. É uma realidade irrespirável, sobretudo à noite. Ah, aquele momento terrível, o da notícia. Sinto que o tempo parou, que a minha vida se imobilizou ali. Se eu tivesse fá, seria outra coisa. Não fosse meu filho... e pôs-se a chorar.

       Animei-a como pude.

      Em casa, Margarida me contou. Soraya não quisera de início falar no assunto da carta. – Ah, pra que mexer no passado, num momento desagradável? Ela forçara um pouco, acabara falando e até por fim se exaltando. 

      Fora a única questão entre ambas. Que eu considerasse se ela não tinha alguma razão. No fundo, pensara em voz alta, nem sabia como lhe viera aquilo de repente à cabeça. Arno já havia quase dois anos que estava separado. Aquilo era definitivo. E ainda mais com o nascimento do filho... Estava na hora de começar a considerar a situação deles. Acontecera na véspera de viajar pro Nordeste, e ele se aborrecera. – Isso é amor de mulher! Ela silenciara. Arno logo pedira desculpas. E haviam ficado sem se falar. Na viagem, lembrando-se ainda da frase dele tivera um acesso tardio de ódio, garatujara num papel de avião duas ou três bobagens, postando a carta no Aeroporto de Recife. E no carro do irmão pra casa da mãe já estava arrependida, mas que fazer? Eu podia bem imaginar, consumira-se com o pensamento do escrito. Ah, se a carta se extraviasse! Quando estourara o Golpe, ao invés de ficar apreensiva, se alegrara, pensara logo: Quem sabe se naquela balbúrdia nacional ela se perderia pelo mundo...

     Que alegria quando Arno lhe telefonara naquela noite pro Recife! Claro, ela não tocara no assunto. No telefonema seguinte, não conseguira se calar. Não, não recebera carta nenhuma, ele dissera. Bem, se recebesse, que a rasgasse, fora escrita num momento de raiva, e Arno prometera que sim. Não a rasgara, ali estava, fechada.

        Calara; e depois:   

     –  Arno,  na intimidade, tinha umas durezas amargas de aceitar. Felizmente ocasionais. Nossos desencontros duravam pouquíssimo, ele não suportava vinte e quatro horas de frieza. Ficava inquieto, era o primeiro a tentar desfazer o mal-estar. Então, como um menino grande, abria-se. A sua luta, que eu o entendesse, fora sempre libertar-se das convenções. Nem bem luta, uma verdadeira guerra dentro dele. Libertar-se da Convenção, essa camisa-de-força! Quebrava o gelo. Contava-me com graça o triste fim de alguém que se propusera retirar as máscaras por um dia. Não se justificava nunca, experimentava apenas explicar-se... Arno era um homem que tinha de ser aceito inteiramente ou rejeitar inteiramente. Eu o amava.

 

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