Xavier Placer
Não haviam tocado nos papéis
62 NÃO ESPERAVA que o Brigadeiro me telefonasse. Tomava eu mesmo a iniciativa. E recorria cada dia a outras amizades, a conhecidos. Mas graves eram as circunstâncias. As pessoas se esquivavam ou, pior, prometiam e nada faziam. Ninguém queria se comprometer.
Apenas Sadhoc, cunhado de um juiz militar, mexeu-se ativamente. Em vão. Logo entendi que devia mesmo era me agarrar ao Brigadeiro Antunes.
Soraya, chamada por nós, viera de Recife diretamente para nosso apartamento. E ao anunciar-lhe a situação, o desespero a esmagou. Cuidava do filho com um zelo exagerado e ansioso. Falava da carta que escrevera para Arno no avião e postara no Aeroporto dos Guararapes.
Margarida: Não nos falou em tal carta.
– Mas ele recebeu-a
Minha mulher acompanhou-a ao apartamento da Urca. Não a acharam.
Por discrição não lhe perguntamos que importância dava àquilo.
– Vocês compreendem. No fundo, aquelas palavras não eram sinceras. Um impulso da hora, uma bobagem. Por que a escrevi? Se a achar, eu a quero queimar. Sem lê-la, sem lê-la. Arno! Arno! ele é minha vida. Eu não posso perdê-lo.
Teve uma crise nervosa.
Repetia frases desconexas, que Arno lhe dava a maior força na profissão, que sem ele sucumbiria, que seria do filho deles sem pai, que seria... Pelo amor de Deus pedia-me que eu saísse a localizá-lo, que ela enlouquecia.
Só a acalmamos fazendo-a ingerir uns comprimidos.
Uma semana de procura. De esperanças e de desespero. Nossos filhos silenciavam olhando-nos entristecidos.
No dia 1º de maio, enquanto a massa popular se dirigia para um Vasco-Flamengo no Maracanã com portões abertos pelo governo, o Brigadeiro passou por meu apartamento. Localizara o nosso amigo. Arno estava no Hospital Central do Exército.
Soraya e Margarida exaltaram. Crivavam o Brigadeiro de perguntas às quais não sabia responder. Queriam ambas acompanhar-nos na ida a Benfica. O Brigadeiro desenganou-as: ele se encontrava recolhido à enfermaria dos incomunicáveis.
Acompanhei-o eu; mas também não me deram acesso até o preso.
Tornou dali a uns quarenta minutos, fisionomia acabrunhada. Entramos no carro. Quando o chofer partiu:
– Ruins notícias, Brigadeiro?
Sacudiu a cabeça:
– Não foi coisa de soldado. mas de policiais.
Arnóbio não o reconhecera. Pedia alto: – Água! Água! Estendera-lhe um copo à cabeceira. Bebera avidamente e bruscamente voltara-se para a parede, não o reconhecera.
Repetira o nome dele três vezes, ele nada, gemia sempre. Conversara com o major-médico. Havia conseguido que o transferissem da enfermaria para um quarto e maiores cuidados no atendimento. Acrescentou baixo que deixara dinheiro para uns medicamentos que escasseavam.
– Não pediu para o levarmos?
Insinuara. Porém o comandante dissera-lhe que era preciso dar um tempo.
– Diga tudo. Notou em meu primo vestígios de violência física? falei com impaciência.
O Brigadeiro me encarou:
– Eu o compreendo. Arnóbio ali, o nosso amigo, naquele pijama de caserna... Não, não, aparentemente nenhum vestígio, a violência teve consequências internas. Continuemos a agir (bateu-me no joelho), cabeça fria e ação, Nestor.
Dia seguinte o Brigadeiro mandava o motorista à minha casa.
O rapaz me anunciou da parte dele a morte de meu primo, enviava pêsames dele e da mulher. Que procurasse em seu nome no HCE o capitão relações-públicas Genivaldo Hottz.
Seroa me acompanhou.
No corpo-da-guarda um sargento miúdo, pernas pra cima da mesa, escutava rádio-de-pilha ao ouvido e ignorou a nossa chegada.
– Eh, por favor! chamou Seroa.
Levantou-se espreguiçadamente:
– Sargento Amazonas, às ordens.
Disse firme que desejava ir à presença do Capitão Genivaldo.
– O Genivaldo gordo ou o Genivaldo magro?
– Genivaldo Hottz.
– Perfeito. É o magro.
Somente minha entrada foi permitida. Crachá de visitante ao peito, escoltou-me um soldado.
Evitávamos as poças d'água no pátio chovido.
– Esse sargento Amazonas é uma piada. Tem dois cigarros disponíveis aí , doutor?
Abandonei-lhe a minha carteira toda.
Tocou a corneta
– Hora do rango, a melhor hora! e deixou-me precipitadamente dizendo que podia entrar e esperar no gabinete.
Da antesala, através da porta vaivém, podia ver o painel na parede de fundo onde um helicóptero desfraldava uma faixa em céu de grandes nuvens brancas convocando a amada Pátria acima de tudo.
O magérrimo relações-públicas de óculos escuros me recebeu de pé em seu gabinete. De pronto foi dizendo que o corpo se encontrava no necrotério do Hospital e que eu estava autorizado a providenciar a remoção.
– Bandidos! Assassinaram um brasileiro! explodi.
Não se moveu um músculo em seu rosto.
– No HCE, senhor, desde a primeira hora teve o tratamento devido.
Apresentou a papelada de liberação para que eu assinasse. E acrescentou duas ordens superiores: primeiro, que o sepultamento fosse feito no Rio, com a maior discrição. Segundo, devia ser evitada a imprensa. Entendido? O Sr. Major-Brigadeiro Antunes ficara fiador do cumprimento daquelas determinações.
Disse; e apresentou-me outro papel.
– Aqui está o atestado de óbito.
Corri os olhos. Causa mortis: insuficiência renal.
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