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Não haviam tocado nos papéis

 

62 NÃO ESPERAVA que o Brigadeiro me telefonasse. Tomava eu mesmo a iniciativa. E recorria cada dia a outras amizades, a conhecidos. Mas graves eram as circunstâncias. As pessoas se esquivavam ou, pior, prometiam e nada faziam. Ninguém queria se comprometer.

   Apenas Sadhoc, cunhado de um juiz militar, mexeu-se ativamente. Em vão. Logo entendi que devia mesmo era me agarrar ao Brigadeiro Antunes.

      Soraya, chamada por nós, viera de Recife diretamente para nosso apartamento. E ao anunciar-lhe a situação, o desespero a esmagou. Cuidava do filho com um zelo exagerado e ansioso. Falava da carta que escrevera para Arno no avião e postara no Aeroporto dos Guararapes.

        Margarida: Não nos falou em tal carta.

        – Mas ele recebeu-a

       Minha   mulher  acompanhou-a  ao  apartamento da Urca. Não a acharam.

     Por discrição não lhe perguntamos que importância dava àquilo.

       – Vocês  compreendem.  No fundo,  aquelas palavras não eram sinceras. Um impulso da hora, uma bobagem. Por que a escrevi? Se a achar, eu a quero queimar. Sem lê-la, sem lê-la. Arno! Arno! ele é minha vida. Eu não posso perdê-lo.

         Teve uma crise nervosa.

         Repetia frases desconexas, que Arno lhe dava a maior força na profissão, que sem ele sucumbiria, que seria do filho deles sem pai, que seria... Pelo amor de Deus pedia-me que eu saísse a localizá-lo, que ela enlouquecia.

         Só a acalmamos fazendo-a ingerir uns comprimidos.

 

      Uma semana de procura. De esperanças e de desespero. Nossos filhos silenciavam olhando-nos entristecidos.

        No  dia  1º de  maio, enquanto a massa popular se dirigia para um Vasco-Flamengo no Maracanã com portões abertos pelo governo, o Brigadeiro passou por meu apartamento. Localizara o nosso amigo. Arno estava no Hospital Central do Exército.

      Soraya e Margarida exaltaram. Crivavam o Brigadeiro de perguntas às quais não sabia responder. Queriam ambas acompanhar-nos na ida a Benfica. O Brigadeiro desenganou-as: ele se encontrava recolhido à enfermaria dos incomunicáveis.

         Acompanhei-o eu; mas também não me deram acesso até o preso.

     Tornou  dali  a  uns  quarenta  minutos,  fisionomia acabrunhada. Entramos no carro. Quando o chofer partiu:

          – Ruins notícias, Brigadeiro?

          Sacudiu a cabeça:

          – Não foi coisa de soldado. mas de policiais.

      Arnóbio não o reconhecera. Pedia alto:  – Água! Água! Estendera-lhe um copo à cabeceira. Bebera avidamente e bruscamente voltara-se para a parede, não o reconhecera.

         Repetira o nome dele três vezes, ele nada, gemia sempre. Conversara com o major-médico. Havia conseguido que o transferissem da enfermaria para um quarto e maiores cuidados no atendimento. Acrescentou baixo que deixara dinheiro para uns medicamentos que escasseavam.

          – Não pediu para o levarmos?

      Insinuara.  Porém  o  comandante  dissera-lhe que era preciso dar um tempo. 

      – Diga tudo. Notou em meu primo vestígios de violência física? falei com impaciência.

          O Brigadeiro me encarou:

       – Eu o compreendo. Arnóbio ali, o nosso amigo, naquele pijama de caserna... Não, não, aparentemente nenhum vestígio, a violência teve consequências internas. Continuemos a agir (bateu-me no joelho), cabeça fria e ação, Nestor.

 

       Dia seguinte o Brigadeiro mandava o motorista à minha casa.

        O  rapaz  me  anunciou  da  parte dele a morte de meu primo, enviava pêsames dele e da mulher. Que procurasse em seu nome no HCE o capitão relações-públicas Genivaldo Hottz.

           Seroa me acompanhou. 

         No corpo-da-guarda um sargento miúdo, pernas pra cima da mesa, escutava rádio-de-pilha ao ouvido e ignorou a nossa chegada.

           – Eh, por favor! chamou Seroa.

           Levantou-se espreguiçadamente:

           – Sargento Amazonas, às ordens.

         Disse  firme  que  desejava  ir  à  presença  do Capitão Genivaldo.

           – O Genivaldo gordo ou o Genivaldo magro?

           – Genivaldo Hottz.

           – Perfeito. É o magro.

           Somente minha entrada foi permitida. Crachá de visitante ao peito, escoltou-me um soldado.

            Evitávamos as poças d'água no pátio chovido.

         – Esse  sargento  Amazonas  é  uma  piada. Tem dois cigarros disponíveis aí , doutor?

            Abandonei-lhe a minha carteira toda.

            Tocou a corneta

    – Hora do rango, a melhor hora! e deixou-me precipitadamente dizendo que podia entrar e esperar no gabinete.

          Da antesala, através da porta vaivém, podia ver o painel na parede de fundo onde um helicóptero desfraldava uma faixa em céu de grandes nuvens brancas convocando a amada Pátria acima de tudo.

       O  magérrimo  relações-públicas de óculos escuros me recebeu de pé em seu gabinete. De pronto foi dizendo que o corpo se encontrava no necrotério do Hospital e que eu estava autorizado a providenciar a remoção.

          – Bandidos! Assassinaram um brasileiro! explodi.

          Não se moveu um músculo em seu rosto.

      – No  HCE,  senhor,  desde  a  primeira  hora teve o tratamento devido.

          Apresentou a papelada de liberação para que eu assinasse. E acrescentou duas ordens superiores: primeiro, que o sepultamento fosse feito no Rio, com a maior discrição. Segundo, devia ser evitada a imprensa. Entendido? O Sr. Major-Brigadeiro Antunes ficara fiador do cumprimento daquelas determinações.

              Disse; e apresentou-me outro papel.

           – Aqui está o atestado de óbito.

           Corri os olhos. Causa mortis: insuficiência renal.

 

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