Xavier Placer
Não haviam tocado nos papéis
61 PARA ONDE o haviam conduzido? Esta foi a angústia da família. Margarida, com habilidade de mulher, em resposta ao cartão de Soraya, escreveu-lhe que retornasse do Recife. O golpe militar, atingido o alvo, refluía. 16 de abril. Na véspera Castelo Branco tomara posse da presidência da República. Tudo voltava a certa normalidade, vigiada.
Encontramos Tio Justo na Fazenda com uma enfermeira atenta recostado nos travesseiros. Seus olhos se umedeceram. Segurou-nos as mãos. Pediu que eu localizasse o filho. Os bandidos, era o tempo deles, o tinham levado... Atentando em minha mulher, sorriu. Margarida inclinou-se para beijá-lo, enquanto ele murmurava:
– Como pôde acontecer essa desgraça, minha filha?
– Acalme-se, Tio. Nestor vai localizar Arno. Tudo há de dar certo.
– Que Deus te ouça! (voltando-se para mim): Fala com conhecidos. Vê um advogado. Quem sabe um detetive. Não aquele amigo, o Brigadeiro que esteve aqui uma vez?
Acalmei-o, tentei acalmá-lo. Havia de se resolver. Eu iria logo ao Brigadeiro Antunes. Era militar apolítico, demonstrara sempre amizade a Arno.
Calou-se. De repente quis saber de Jovita e da neta. Há quanto tempo não via a sua querida Aninha!
Margarida mentiu. Jovita ficara desolada, Tio. Chorara muito e empenhava-se com o padrinho, o Coronel Protásio; quanto a Aninha haviam poupado a criança, claro, não lhe tinha contado nada.
– Mas o Sr. não quer que a gente vá buscar Letícia em Dois Corações?
– Alarmá-la? Ela nada pode fazer.
– Uma companhia para o Sr.
Deixando cair o braço, de novo falou no Brigadeiro.
Partimos de Santa Rita ainda naquela noite.
Na manhã seguinte entrei em contato com o Brigadeiro Antunes. Recebeu-me em seu gabinete no Ministério da Aeronáutica, ouviu-me com a natural reserva de militar.
– Farei tudo que puder pelo nosso amigo. Escusado recomendar sigilo sobre isto até com familiares.
Ligou na minha presença. Seria algum colega, pois trocaram cifrados gracejos. Observei dali a instantes que falava com um coronel do Centro de Informações da Aeronáutica. Passou-lhe os dados sobre o tenente da reserva Arnóbio Franco de Melo.
Devíamos aguardar. Em vinte minutos, se ele estivesse detido na área da Aeronáutica, vinham informações.
Um cabo trouxe cafezinho.
Quando o subalterno saiu, o Brigadeiro pediu-me novos detalhes sobre a prisão.
Referi tudo. Não fez comentários. Lembrou sua ida com a mulher um dia à Fazenda da Arca. E quis saber do pai como estava.
– Precisava vê-lo ao comunicar a ele o fato.
– Compreendo. É viúvo, pois não?
– Há muitos anos. A única filha, freira em Dois Corações.
De chofre:
– Arnóbio tinha inimigos?
– Nenhum, que me conste, Brigadeiro.
– Pergunto, porque em situações de exceção há que formular hipóteses, todas as hipóteses.
Depois de breve silêncio:
– Ao ler os artigos dele, mais de uma vez eu me indaguei como podia um bacharel, todo de letras, meter-se com aquela malta de irresponsáveis.
– Arno era um protesto vivo contra tudo que no seu entender não estava certo. Desde jovem, temperamento.
E comentei a atuação jornalística dele na Última Hora naquele ano e meio de colaboração, às quintas-feiras, enfatizando que se colocava como analista político de atos e fatos.
– O pai, proprietário de terras, como encarava tudo isso?
Escolhendo palavras, esclareci que meu Tio, homem reservadíssimo, não tocava nesses assuntos com o filho nem o filho com ele. No fundo devia achá-lo um espadachim. Arno demonstrara a vida toda uma impaciente consciência crítica da organização social.
– Nestor, na prática a teoria tem que ser outra. Em nome da ordem, incumbe ao poder ocasionalmente agir à margem da ética, arranhar um pouco a cidadania. Vinte vezes pior que a injustiça, é a desordem.
Ia dizer ao bom Brigadeiro que injustiça é a maior desordem e que meu primo nada tinha de descompromissado atirando a torto e a direito nem se sentia bem na proximidade da tal malta a que se referira, mas calei. Não devia fazer de advogado, era demais querer que um homem da situação saísse da própria pele.
– Seus artigos. Lia-os todos. Se fossem medíocres, teriam passado despercebidos na grita geral. Mas não, apesar de nossas trincheiras opostas, reconheço que eram brilhantes. Aqui e ali uma farpas na farda...
– O Sr. o conhece. Comentava comigo que umas e outras eram para espertar o leitor que cochilasse à leitura. Um contestador, de fato, mas no terreno das ideias, não apelando nunca para a violência e sim para a reflexão.
E eu a cometer novo erro tático, a justificar! Brigadeiro Antunes ouvia e silenciava. Esperávamos.
O telefone tocou. E a informação veio negativa. Nenhum tenente da reserva com aquele nome detido na área de Ministério da Aeronáutica até ali.
– Aí está , Nestor.
Sugeri ao Brigadeiro que, sendo Arno oficial da reserva do Exército, talvez devêramos ter começado por aí. Respondeu-me que pensara nisso mas que seus contatos com o pessoal do Exército eram quase nulos. Tentaria.
Um capitão entrou e disse ao superior que estava em cima da hora a reunião da semana.
Enviando cumprimentos para minha esposa, estendeu-me a mão. Qualquer notícia me comunicaria de imediato.
Naqueles dia confusos tinha pedido a Margarida que ligasse para Jovita. Minha mulher negara-se redondamente. A antipatia entre as duas filhas de Eva era cordialíssima.
Liguei eu. Atendeu o Lincoln.
– Ôi, Nestor. Jovita? Vou chamar.
Ela me escutou sem perguntas, e então:
– De Roma eu telefono pra você.
– De Roma?
– Embarco agorinha mesmo, ao meio-dia. Com Saloméa. Viagem de negócios, pretendemos abrir uma terceira butique, sabe? De confecções em couro.
Perguntei pela menina.
– Aninha anda a estas horas pelos Estados Unidos. Foi à Disneylândia, uma excursão com as coleguinhas do Centro Educacional. Sim, de Roma eu telefono, Nestor. Claro que estou chocada com a notícia, viajo preocupadíssima.
Atropelou desculpas, dispunha de hora-e-meia para estar no Galeão, como ia Margarida, beijos pra ela e as crianças, abraço, Nestor!
– Boa viagem, Jovita.
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