Xavier Placer
Não haviam tocado nos papéis
60 NÃO HAVIAM TOCADO NOS PAPÉIS. Ao lado da máquina de escrever, jornais e revistas, naquela ordem em que ele gostava de dispor as coisas. Levei-os para examinar com tranquilidade.
Entre a papelada, folhas bastantes riscadas, fragmentos –
Compridamente ouço o barulho do silêncio na manhã. Dentro dele, em alguma parte, cantam.
Em minha terra! Vão-se os dias... Sinto-me nesta tarde como um arbusto de raízes no solo, galhos voltados para o sol. Penso num outro Arnóbio que poderia ter sido. Se eu tivesse ficado aqui e sempre – nativo e rústico – longe e alheio aos ventos do mundo. Teria sido melhor?
Meus passos silenciam sobre as migalhas de malacacheta do caminho, brilham. Liberto, liberto. Momento significativo que há muito não me visita. Ah, enquanto triunfamos neles são momentos de eternidade.
Oblívio! Oblívio! que fria e bela palavra.
Este rascunho de carta, que minha mulher não recebeu:





MARGARIDA, Como estão vocês?
Outro dia tentei escrever, faltou vontade. Quem sabe hoje! Vocês me compreendem, e este espaçamento de uma palavra amiga. Fere fundo meu orgulho passar os dias na clandestinidade. Como se tivesse cometido um crime.
Sonhei esta noite com Soraya. Ninava nosso filho, eu perguntava-lhe que nome lhe daríamos, pedia para segurá-lo. Ela apertava-o mais ao colo, como um tesouro. Me passa muitas vezes ao dia o pensamento de viajar ao Recife, mas reflito, (ilegível).
Imagino que tão breve não terei condições sequer de retornar ao Rio, à minha antiga vida. Não quero porém agravar os amigos nem parentes com lamúrias. Você sabe que eu nunca simulei sentimentos que não existia, não vou agora...
Meu pai esteve hoje aqui, aliás vem quase todo dia. Letícia, quando não vem, telefona. Pai achou-me abatido. Justifiquei como um saldo de estresse citadino. Perguntou se devia mandar médico. Pedi que não e comentei sobre as preocupações sem cessar que lhe dava. Não me deixou continuar.


Obrigado, minha irmã.
Sei que não estou só, embora seja bom ouvi-lo do seu carinho. O que certas horas me espanta é esta calma de expectador de mim mesmo. Começo a ficar impaciente de tanta inação. Tédio, tédio e eu à margem do calendário. Hoje me levantei deveras triste, penso em Soraya, penso em meu filho, quero escrever pros amigos, não faço.
Levo uma vida de excluído. Se ela estivesse aqui seria outra coisa, porém desejar tanto seria felicidade demais. Dou umas estiradas por esses caminhos para espantar a melancolia, pois a inatividade, você me conhece, é o seu purgatório. logo volto para o meu covil...
Seu irmão, Letícia, se entregou à ação entendendo como outros de boa-fé emendar as injustiças, modificar essa aparência de ordem, desordem perversa. Então é o mundo e a vida um charco? E temos de aceitá-lo, aplaudir e desfrutá-lo no acomodamento? Que terrível: aspirar o melhor, partir pra ele, e não conseguir alcançá-lo!
Não queria agravar você com uma palavra pessimista.
Que retrocesso! A cidadania de milhares de brasileiros jogada num buraco, não,não me calo nessa linguagem de tribuno. Mas francamente me passa pela cabeça mil vezes sair daqui e em qualquer órgão de imprensa que me queira, sob pseudônimo, combater o amordaçamento das liberdades, a supressão das garantias constitucionais, o Golpe que rotulam de Revolução.
Digo mais: gostaria de ser preso quando descobrissem quem se escondia sob o pseudônimo, responder (se há ainda algum arremedo de processo), pegar cadeia ou exílio, definir logo e enfim esta situação. Procurou meu delito, minha culpa. Onde está?
Um brasileiro publica artigos analisando e criticando – seu direito – atos e fatos políticos, que lhe acontece? Corre o maior perigo: é um gangster, deve homiziar-se. Ingenuidade! Vê você que não me corrijo. Oh, Arnóbio! como se não fosse dos triunfadores da hora calar adversários, vendo-os tacanhamente inimigos.
Tempo é que não me falta para "filosofar". Ah, que seria o bicho homem sem os seus excessos, equívocos e acertos! Concluo que tudo sobrevém por conta de que se pode fazer alguma coisa, e eu fiz, franco-atirador através do jornalismo, tentando abrir uma brecha na muralha. Não, Letícia, não me envergonho de ser utopista. A vida, você sabe, sem Esperança, é nada. ELES GANHARAM, EU PERDI.
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