Xavier Placer
Clarinadas
58 A ESTAS HORAS, amigo Léonard?
– Gosto de preparar de noite o meu programa das quintas-feiras na Rádio. A noite me inspira. Depois perdi o sono, dei uma volta lá fora e aqui estou. Nem sei se fechei a porta. Que vento esta noite! (olhou o relógio na parede) – Uma e trinta e cinco!
Servindo-se do café que Arno mantinha numa garrafa, sentou-se na poltrona estendendo as compridas pernas. E ao acender a cigarrilha que apanhara da mesa, falou da boa foto que fizera de Monsenhor naquele dia. Quis saber do amigo se carregava ainda muito nos erres.
– Só carrega, Léonard.
– Parbleu! Como devem andar por aí se divertindo com meus Quinze Minutos.
– Tranquilize-se , amigo. Já ouvi elogios de mais de um jovem, que o Léo é dos nossos, o Léo é legal.
Era o francês quem animava assim as conversas noturnas, mas a iniciativa partia geralmente de Arno. Fez-lhe uma pergunta que há muito desejava: o que achara de seus artigos políticos, se acaso os lera.
Lera todos. E comentou que na Europa escreviam-se essas e outras coisas noutro tom. Com finura esclareceu que a Europa era uma velha civilização, o estilo de vida e o relacionamento entre as pessoas, outro. Talvez formalístico para o nosso gosto...Não criticava o jeito brasileiro, até gostava do à-vontade daqui, que afinava com o seu temperamento.
– É, Talvez tenha faltado um pouco de humor aos meus artiguinhos.
– Não, isso até que não faltava. Nosso chefão, por exemplo, me sugeria o corte de certas expressões nos escritos. Cumpria por à mostra as contradições da burguesia pela dialética implacável. Mas o discurso, quanto mais contido, mais forte. Pobre Alexis! um intelectual de primeira. Tanto redigia como ia para a rua. A polícia sumiu com ele. Com ele e os companheiros tomamos muito cocktail d'abricot em Montparnasse. E eu, me zo deuzar armoriq, traduzindo: e eu que sou bretão, um rude bretão, não era dos mais sóbrios...
– Sou um grande perguntador. Você foi preso muitas vezes?
– Várias. Tive a sorte de nunca me espancarem, como a outros. Não fizeram de mim um mártir. A primeira vez que me prenderam foi com mais dois camaradas. Os policiais nos enfiaram uns sacos pela cabeça. Francamente, era a minha primeira prisão, mas não senti tanto medo. Distraia-me o forte cheiro de farelo do capuz.
– Você sempre um original, Léonard.
– O melhor está por vir . O fim da prisão. Chegados ao departamento de polícia, o mais novo dos camaradas reconheceu de repente na autoridade um velho amigo. Não se conteve: – Oh, Denoir! O tal respondeu que não o autorizara a dirigir-lhe a palavra. Meu companheiro estava excitado. – Cher Denoir! não se lembra que na adolescência dourada tocamos piano a quatro-mãos na casa de Mademoiselle Sophie?
– Desarmou o durão.
– Completamente.
– Então lá como aqui também funciona o jeitinho...
– Oui. Somos todos latinos. Embora vocês nem concebem o fascínio que para grande número de europeus representa o mundo sul-americano. O amanhã está deste lado.
– Sim, mas penso que nem tudo no PCF seriam brincadeiras daquelas.
– Ah, o Partido! Se nos corredores da polícia meu companheiro encontrou um parceiro de piano, no Partido, eu encontrei fanáticos, profissionais e ingênuos. Os fanáticos eram usados; os profissionais viajavam ao Leste, vinham de lá elogiando a boa vodca, as mulheres, alguns traziam bonitos ícones. Em suma, faziam belas carreiras, tornavam-se personalidades importantes, a prole cursando Universidade. E os ingênuos...
– Como Léonard Rohn, digo o camarada Le Charbonnier.
– Isso. Que acabavam expulsos com o rótulo de desviacionistas, de vendidos ao capital estrangeiro e outros nomes feios.
– Que fraternité!
– Uns desligavam-se, bandeando para a extrema direita. Outros, tachados de românticos, sumiam, ninguém ouvia mais falar neles. Tudo com muita autocrítica humilhante e brigas. Mas o pior de tudo, coisa que você não conhece, meu caro: a violação da intimidade da pessoa. Tinha-se que ser um sujeito público. Minha filiação ao Partido foi quando achara que só a ação direta, violenta, resolvia.
– É o itinerário político da maioria...
– Também algum tempo pensei assim. De estudante.
– Ah, quantas voltas temos que dar. Bem-nascido, o menino Léonard achara sempre que os pobres eram os miseráveis que via na rua. Estudante de Universidade, que as prostitutazinhas dos bordéis que frequentava eram filhas rebeldes de família. Ah, o nosso Marxismo aprendido no curso de Filosofia, saído de cabeças bem-pensantes...
– Conheço-as...
– Figure, meu caro, a maioria, a parte trabalhadora da nação condenada a uma existência sem dignidade, sem instrução, desfrutando apenas sórdidas alegrias, migalhas em meio à abundância, ao supérfluo da outra parte. Sem nenhuma perspectiva, eles, os criadores da riqueza, não é verdade?
– Penso com o Léonard.
– Por mil razões, afinal desgostoso da militância partidária, passei a ser hostilizado pelos camaradas, dias medonhos. Em resumo, quiseram que fizesse autocrítica numa atitude qualquer que tomara, neguei-me, desligaram-me do Partido com ameaças e fui a Bretanha me reconciliar com a família. Receberam-me de braços abertos. Ainda mais que viajara com meu filhinho, que eles não conheciam, que lá deixei. Não referi tudo. Naqueles dias ligara-me a uma operariazinha, que a polícia assassinou num comício, helás! criatura admirável.
Sacou de um retratinho. Sorrindo, falou que Arno confessasse com todas as letras se não era mesmo um bretãozinho bonito.
Foi Arno quem falou amigamente:
– E o imenso contestador vai e troca o Manifesto de Marx-Engels pelo Sermão da Montanha.
– Fase terrível. De volta a Paris, me encontrei de repente diante de mim mesmo. Que fazer? Que rumo tomar? Foram noites e dias em que cheguei a pensar em suicídio. Considera. Depois da experiência política, do desengano total, restava-me o quê? A calma resignação filosófica ou a disponibilidade.
Então fez-se padre.
– Fiz-me padre. Já tinha meu curso de Filosofia, em três anos estava ordenado. Sabe como vim para Brasil? Atravessava a Rua do Gato-que-pesca, saíra no Sena e na movimentada Rua Huchette vi numa vitrine de agência de viagens um pôster colorido do Cristo Redentor: BRÉZIL. Sai andando. É lá, é lá o meu lugar! Vou para esse belo país que reparte o Cristo no alto de uma montanha para todos.
Depois de breve silêncio, Léonard completou:
– No fundo, sou uma natureza ética.
– Entendo. Para quem a missão é tudo.
– Uma volta à substância dos Quatro Evangelhos.
– Sim, o Amor.
– Ah, essa palavrinha está tão banalizada, Arno. Eu a evito.
Parara o vento. Agora chuviscava e cada vez mais forte. O cheiro de terra penetrava finamente.
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