Xavier Placer
Clarinadas
57 NA QUIETUDE DA TARDE SERRANA, Arno acabava de pregar na parede da sala o desenho em perspectiva do novo Centro Comunitário. Colocando o martelo sobre a mesa, afastava-se para considerar o trabalho, quando o vigário apareceu.
– Prometi para hoje. Cumpro.
O padre sentou-se a examinar o trabalho que o arquiteto lhe pusera nas mãos dizendo-lhe que se não agradasse tentava outro.
Monsenhor quis ver a planta baixa. Não fazia questão de projeto caro nem barato, meio-termo, como recomendara. Concentrado, verificou atentamente a planta e o desenho da fachada, fez perguntas sobre detalhes, pois era detalhista.
– Como esperava. Tudo ao gosto do cliente explorador, que trabalhou rápido. Deus lhe pague! e abraçou-o.
Enrolando a papelada sobre os joelhos, perguntou amável como se sentia em sua casa o ilustre hóspede.
– Tudo ótimo
– Pois fico satisfeito.
– Mas quem diria, hém, Monsenhor! que um comuna veria a ser projetista do seu novo Centro Comunitário. O sr. sabe, não falta por aí quem me considere, uns maluco, outros um subversivo perigoso...
– Você, filho, não é uma coisa nem outra.
– Um contestador?
– Ponhamos, um equivocado e riu indagando o que pensava ele dos rumos que a Revolução ia tomando.
Arno confessou que andava longe do noticiário. Desligado e nauseado. Perguntara outro dia ao meeiro – então, como ficava o povo desta vez? Ele não ri: – Doutor me desculpe, pra gente sobra mesmo é aquela da traseira do caminhão: POVÃO É PRA VOTAR E LEVAR CANELADA.
– Peça vivida, disse Monsenhor. Só é bobo no que ele quer.
Arno pediu que o cedesse para uns reparos no viveiro das codornas.
– Amanhã. às segundas, não move uma palha.
– Não? Por quê?
– As segundas-feiras são sagradas para ele. Zanza o dia inteiro. Vejo-o sempre vindo de alguma parte.
– Está certo. Os pequenos têm direito a viver lá no cotidiano deles com suas táticas e resistências, seus caprichos. Foi vendo-os na estrada, voltando pra casa com a garrafinha de pinga pendurada nos dedos, que cedo entendi que era urgente mudar muita coisa... Desculpe, Monsenhor! Verdade, que é feito daquele padre Amadeo, seu coadjutor?
– De que você me fala...
– Só uma vez nos vimos. À queima-roupa me declarou que o homem de hoje erotiza tudo, tudo, mas a Moral não morrera, graças a Deus. Os cristãos compraziam-se no sono, ele anelava – Servir, servir!
– É o refrão dele.
– Que o sacerdote tinha vida interior, que nós nem avaliávamos. Não se batizara com o nome de Ama-deo? Riu, e me fixou com um olhar, que olhar! como se eu fosse responsável pela derroca da que enxergava no mundo.
– O padre Amadeo! Só me fez criar cabelos brancos, um presente de grego. Aqui começou por eucumenizar com o pastor, que se auto-intitulou apóstolo. Chama-se Paulo Pires, pois é agora o Apóstolo Paulus. Nem é preciso dizer, em dois tempos se desentenderam. Um afirmando que o Mestre foi empalado, o outro que crucificado. O Luis, kardecista, quer ver o diabo a vê-lo. Riu na cara dele: – Como, então é o contrário do mens sana in corpore sano, reencarna um terno velho e usado num corpo novo, oh, Luis! Agora meu coadjutor caminha por terras de Espanha...
– O quê? Turista espiritual?
– Caminhante de Santiago de Compostela, de barba franciscana, que deixou crescer e bordão. Inventou aí um Livro de Ouro do Peregrino e angariou donativos. Na missa de despedida rogou aos bons irmãos e irmãs. ele que ia pedir e peregrinar por todos, orassem para que seu Anjo Custódio o defendesse de assaltos, perigos e das tentações das três concupiscências.
– Do que, Monsenhor?
– Ah, vejo-o esquecido do catecismo que ensinei a você. Concupiscências da carne, concupiscências dos olhos e soberba da vida. E lá se foi ele com um grande saco e sandálias.
– Rezende Tosta, o juiz, quis processá-lo, não?
– Só não o fez a meu pedido. Homiliando no casamento da neta do D'Ângelis afirmou que o casamento civil era um ato cartorial sem maior valor, verdadeiro era o matrimônio religioso, o outro até ridículo, um formalismo. Ah, só comprei aborrecimentos com ele. O sr. bispo não pensou nos meus setent'anos quando o despachou para cá...
– Com o padre Léonard, agora acertou.
– Ah! É outra pessoa.
Que era outra pessoa, repetiu. Erguera-se, agradecendo o projeto. Mas quando Monsenhor se punha de pé para partir, encompridava ainda a conversa.
– Não posso desejar melhor coadjutor. Moço, mas que amadurecimento! Penso mesmo que não o terei por muito tempo, a intenção dele é embrenhar-se pelo Brasil Central, fixar-se numa missão indígena. Conhece o problema do índio mais do que nós.
– Aqui, na terrinha, o francês deve ter desarrumado um pouco as coisas no começo, não?
– Bastante. Quando apresentei aquele rapagão de calça e blusão, quem é que admitia que fosse padre? Agora, só lhe querem bem. É o padre Léo pra cá, padre Léo pra lá.
– Que estranha vocação, Monsenhor. Confidenciou-me ser de família vagamente católica, apesar de bretões. Que se bacharelara em Filosofia na Sorbonne e fora lecionar na Província. Para fazer o mestrado, voltara a Paris. Aí um colega politizado ligou-se a ele. mostrou-lhe a miséria dos subúrbios parisienses e só então vira a degradação social com os próprios olhos. De comum acordo, o amigo e ele haviam abandonado o mestrado e se filiado ao Partido Comunista Francês.
– Vejo que você sabe mais do que eu. Proseiam bastante.
Sentiu uma ponta de ciúme em Monsenhor.
– A propósito. Informaram que outro dia apareceram por aqui uns ambulantes...
Arno: Dois. Um grandalhão e outro com a sacola oferecendo artigos religiosos. Quinquilharias.
– Não foram à matriz. Estranho, isso me intriga. Mas daqui a pouco tem você o nosso amigo. Nesta hora já acabou o jogo de basquete, está a dialogar com os jovens e a ensinar-lhes a fotografar.
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