Xavier Placer



Clarinadas
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Desci de manhã pra comprar jornais na banca, ali me demorei conversando com o jornaleiro e ao abrir a porta do apartamento dois sujeitos entram comigo. Identificaram-se: eram do DOPS. Sem me dar atenção, começaram a vasculhar gavetas, estantes, escaninhos, surdos aos meus novos protestos. Os documentos. Onde estão malocados os documentos? – Que documentos? Ativos, recomeçaram. Que fazer? Deixei-os esquadrinhar. Quando cansaram, decepcionados, um deles declarou que queriam de qualquer jeito, os documentos com as instruções de cima. Não tenho documentos de instruções de cima nem de baixo, sou comandante da PANAM e vou ligar pro meu advogado. Não consentiram. Eu não podia negar que era comuna, um cara com tanto livro em casa só podia ser comuna. Declararam que me levariam, e já. Pois que esperassem (falei forte) ia mudar de roupa e pegar a escova de dentes. No quarto rabisquei um bilhete pra Saloméa inventando telefonema da Companhia, devia viajar imediatamente.
Quando volto, que topo? Os dois visitantes repoltreados na sala bebendo do meu conhaque. Fiquem à vontade, senhores! O que me acusara de comuna pagou-me uma gentileza: Você cara é um carioca legal! e serviu-se mais de uma vez.
Lá me hospedaram três dias na Rua da Relação, que não é um hotel de cinco estrelas a que a Companhia me acostumou no estrangeiro... Puseram-me num pátio com subversivos, boa gente, não se levassem tão a sério e frequentassem um pouco mais pente e sabão.
No pátio, um sujeito coçando o pé: Quero fazer aqui e agora pra todo-mundo uma declaração histórica: me desligo de vez do Partidão. Gelaram! aquele um trotskista! Certo bigodudo me perguntou se eu era da linha soviética ou chinesa. Da linha PANAM, companheiro. Sombrio, amarrou-me a cara, soube depois que era carrasco do Partido. Um fortão me contou os horrores que sofrera na mão dele. Como não rompera? E o fanático: Ora que importância, camarada, a minha pessoa diante da causa?
Vi de tudo. Um estudantezinho que evidentemente não sabia por que viera parar naquele pátio. Empalidecia com as brincadeiras de certo indivíduo: El paredon, hém? Só não quero, garoto é que me mandem fuzilar sozinho.
Vi e ouvi o ridículo em pelo. No dia seguinte, chegou-nos um ceguinho preso. Haviam segurado o coitado na rua como boateiro e alarmista...
Um exaltado execrava o colonizador português por haver metido na pele do brasileiro a obsessão do latifúndio. Somente a violência, invasões de terra resolvia. O conterrâneo: Pois é. Quantos hectares devolutos logo na entrada do nosso município. O partidário dos sem-terra: Não, não. Aquela área é do meu pai. E olha que não são terras de grilagem.
Mas o melhor era o jovem padre: Me chamam aí padre de passeata, companheiro. Sou da vanguarda socialista da Igreja século XX, que fez opção inteligente pelos pobres, pô! Leitor de teus artigos, disse que gostaria de te conhecer. Observou: Teu amigo podia bater mais rijo, mas tá certo, não é um chato. Sabe enxergar nessa mélange toda as possibilidades sociais do futuro.
Olha, o Manifesto dos Intelectuais, que você me disse ter assinado, saiu, tenho os jornais que Saloméa reúne pra mim nas ausências, achei-o num canto discreto de página. Os nomes em ordem alfabética, o teu, claro! entre os primeiros. Mais: lembras-te daquele casalzinho de californianos que nos fotografou no almoço dos dez anos do nosso saudoso grêmio literário? Pois o Time reproduz com legendas e nomes completos várias daquelas fotos da turma antiga. O Uchoa enxergou longe, lembra da suspeita que lançou no Roda Viva sobre os dois?
Depois te conto o interrogatório aparentemente pro forma com o delegado. Oxalá não me tenham liberado para melhor me acompanhar os passos. Que nosso Uziel não seja interceptado por aí, abraço do teu,
Seroa.
MEU CARO EXILADO,
Acabo de ler tua carta ao Nestor. O incidente do soldadinho sonolento tem a marca registrada: Arnóbio. Essas e outras acontecem com gente de imaginação... Mas vamos ao que te pode interessar.
Passei por acaso pela Rua Redentor, em Ipanema, onde mora o forte candidato a primeiro mandatário. Multidão-monstro, como exageram os jornais da situação, à porta do edifício em vigília cívica. Ele (ou um sósia) de quando em quando aparece entre as cortinas da janela, acena. Pois bem, ia eu a meu negócio, quando escuto ovações. Volto, e vejo carros de reportagem, aquele povaréu de braços pro alto berrando:
Castelo no Planalto!
Viva a Revolução!
Isto. Enquanto se fazia um Presidente, ambulantes gritavam picolé e pipoca, vendiam bandeirinhas verde-amarelas.
Nosso Protásio que, deves saber, com meia dúzia de comandados tomou num golpe-de-mão o corpo da guarda de uma unidade de artilharia (a imprensa noticiou), pegou um tiro na canela, está um miles gloriosus... de perna engessada. Fui visitá-lo. Jornais e revistas jogadas no chão junto à poltrona. As frases no gesso tantas, que a custo arrumei espaço. Escrevi: VIVA O 1º ALUNO DA TURMA! Sorriu, como é que eu sabia? Dei-lhe segunda alegria: Está na cara, Protásio. Gargalhou. Venha daí outro abraço, paisano. Vês que cumpro sem alarde meus deveres de bom samaritano. Chegaram em coluna, um coronel, um major, um capitão e senhora. Eu, reservista de terceira, bati em retirada.
Imagino Arnóbio Franco de Melo nos bons ares das Alterosas gozando o seu ócio sem vontade, me perguntando o que penso de tudo isso. A propósito, quem é esse Deputado Menescal que tanto brilha Coordenador do Governo de Coalizão de Minas Gerais?
Que penso? Ah, não consigo enxergar nada nada de bom pela frente. E o que mais me indigna não é tanto os fardados, são os cartolas, mãos-dadas com eles, esses mesmos que ontem apregoavam: O PREÇO DA LIBERDADE É A ETERNA VIGILÂNCIA!
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Este começo estava na máquina e os tiras nem viram. Retorno o que ia escrevinhando semana passada, caro Arno.
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