Xavier Placer



Clarinadas
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No sisudo Jornal do Comércio, meia-página, não lembro de quem, trazia outro dia por título: CASTELO É A SOLUÇÃO. Bom título, hém? o engraçado é o que ocorre desde o começo: o "sistema" se fixou mesmo em Castelo... Meu decano, geralmente bom analista político, me garante que a castra-ação (a expressão é dele), vai durar um quarto de século ou mais, que os cartolas colaboradores serão devorados pelos da farda, um a um, todos. Já se fala em cassação, embora não se saiba direito do que se trata.
Eis que Graça, minha assistente, entra Departamento adentro. Picota o cartão, reclama do ar condicionado, pergunta que tanto batuco na máquina o mestre. Sem esperar resposta, conta que dois funcionários – um de esquerda, outro de direita – altercavam agorinha mesmo no pátio, briga de palavrões. – Não houve um do centro, pergunto, pra apaziguar? – Nada, havia é riso grosso. Diz-me que fez um diário da crise de Jânio a Jango e que vai publicá-lo, incluindo agora o desfecho. – Claro, mestre, pra filha do rei coisa nenhuma acontecerá. Covardia, hém?
Olha o que me conta após o Golpe esta filha e neta de militares, a carioca mais bronzeada de praia do Rio de Janeiro. Tem contra ela a mocidade e as aparências, não a tomam a sério em casa. Mas no fundo não é o que aparenta, tem cabeça. Sim, mais uma vez a Graça se incompatibiliza em família. O padrinho reformado a dizer que aos civis não assistia absolutamente razão pra se queixarem, muitas vezes haviam sido advertidos, isto em reservado, que não tomassem juízo a desordem daria no que deu. Calara-se em respeito ao velho. Aí declara o filho, major, que ia pleitear lugar no alto escalão de uma estatal, que tal, Graça? Calara de novo. Entra na conversa o cunhado, fanático brigadeirsta a sonhar com uma comissão no estrangeiro, se possível em Berlim, ganhando, claro, meus amigos, em dólar. E triunfante: Temo é precisar voltar de uma hora pra outra. Há uns idealistas de farda que vão esquecer amanhã que nossa pátria tem que ser governada é na marra mesmo. Vão liberalizar o belo movimento! Certo que a força-tarefa da esquadra norte-americana rondou a costa brasileira, mas a Logística, para orgulho nosso, foi nossa. Vai o pai da Graça comenta: Pra nós, a classe militar sempre sacrificada, o 31 de março sem dúvida foi um bem... Ela: Oh, pai! o problema é saber se será um bem pro Brasil! Não bastou o Estado Novo? E disse que saiu gritando pra quem quisesse ouvir: Burocratas! Corporativistas! – Ah, Nestor, nessas horinhas ninguém me segura, nasci em lugar errado.
O resto fica pra outra oportunidade. Guarda esta carta. Um dia por certo terei gosto em rever este pedaço vivo da historinha contemporânea. É de admirar a coragem doida de uns poucos meninos. Aqui e ali, em cima da tinta branca com que a ordem brochou as pichações antigas, reaparecem novos slogans, protestos. Não digo mais, você deve estar por aí informado.
Não, não esqueci seu pedido. Liguei vinte vezes pro escritório, ninguém atende. Ora! Arézio Santiago a estas horas está longe, em sua estância no Uruguai, ou você duvida? Me diz Seroa que vai te escrever. Margarida na certa quer acrescentar a esta mal traçada duas palavras.
Nestor.
Arno, meu querido, recebi postal de Soraya, tudo certo com ela e o menininho. Pergunta se você ficou aborrecido com a carta que lhe mandou. Olha, a figuinha do garoto apareceu atrás da poltrona da sala, achada pela faxineira. Naturalmente caiu na visita de vocês na véspera dela viajar. E os adolescentes já estão sentindo sua ausência, você sabe que Augusto é fã do tio Arno e Andrea vive a perguntar quando volta meu padrinho. Ficamos contentíssimo em saber que as coisas correm bem com você na terrinha. Um alô pra Tio Justo.
ARNO,
Depois da escalada com jeito de definitiva, o clima é de calmaria. O pior aconteceu, restam emocionalidade e mútua desconfiança. Dos contestadores de ontem ouve-se toda hora: Eu , que sempre estive do lado da ordem...Todo mundo legalista!
Aqui na Universidade, de onde te escrevo, a Pró-reitora, uma vivandeira, dá as cartas enquanto o Reitor, um amorfo, se apaga. Tivemos a visita do Chanceler, senador que só avistamos nas grandes datas; retoricamente nos tranquiliza: ninguém tocará num fio de cabelo de nenhum mestre ou funcionário, quanto ao nobre estamento universitário estava empenhada ali a sua palavra.
Não me incomodaram, Arno, pelo menos até agora. Talvez para situações tais sirvam a minha reserva e o bigode... Mestres, doutores, funcionários, porém, estão sendo apontados, a estudantada escasseia. Antes o rótulo era revolucionário, a partir de 31 de março a palavrinha que condena é: subversivo. Cunharam uma expressão nova: dedo duro. Dependências policiais superlotadas. Notícias de arbitrariedades, violências. Um jornalista, nosso vizinho, foi arrastado do apartamento e a família não o localiza. Os telefones, grampeados (outra bela palavrinha).
Os jornais saem com espaços em branco, editoriais vagos. E veladas picardias. Será que os donos da situação não enxergam? Algumas são óbvias. Jornalistas driblam censores, imagina o que não inventa a malícia do brasileiro. Fatos miúdos, insignificantes são noticiados pra encher, personagens típicos trazidos a baila. As rádios tocam música clássica, as tevês impingem novela mexicana. O povo? Ora, o povão!
Meu caro, parece que me divirto na hora grave. Mas não, não tenho a menor dúvida: toda esta estória é a vitória final do tenentismo desde a marcha suicida dos 18 do Forte, e jura o Seroa, desta vez, Nestor, pra ficar.
Como você escreveu num de seus primeiros artigos: o poder político tem que assumir entre nós responsabilidade e vergonha a fim de nos pôr a salvo das intervenções periódicas, coisa histórica. Sabido que não resolve cursos acadêmicos da ESG com visita coletiva a USA e distintivo na lapela. Claro, acrescento eu, Cidadania acima da Força, pra valer.
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