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Clarinadas

 

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NESTOR,

            Cheguei a Santa Rita pelas quatro e meia da manhã. Tudo bem. Apenas isto nas Agulhas Negras: um  soldadinho nos cruzou a baioneta   – Alto lá, é militar?   Respondi: – Fui. – Não é? – Sou, e exibi-lhe meu certificado do CPOR. – Destino? Ocorreu-me na hora:  – Missão  reservada. Formalizou-se numa continência. – Pode seguir, Tenente. Imagino que o aguerrido recruta se sentiu de repente, importante, sim, por dentro de meio-segredo revolucionário... Uziel ao volante segurava o riso. Tranquilize pois Margarida tão aflita pra que eu deixasse o Rio, mas é bom atender a pressentimentos de mulher.

       Pai ficou feliz com a minha presença, discreto como sempre. Eu é que fui preparando o espírito dele e anteontem lhe resumi a minha vidinha nestes dois anos e meio, conversa de homem pra homem. Disse que já havia suspeitado da minha separação de Jovita, a quem elogiou. Perguntou-me se eu estava vivendo com outra. Sim; e uma vez ela estivera comigo de visita na Fazenda, contei minha ligação com Soraya, ouviu tudo calado. Quando lhe falei no neto, sorriu. Assim que Soraya voltar do Recife, apresento a ele mãe e filho. O menino vai fazê-lo esquecer as minhas façanhas, esquecer e alegrar-se com um herdeiro pra grei dos Melos.

       Não te escrevo de casa. Anteontem Monsenhor Brasil apareceu na Fazenda e depois de conversarmos umas duas horas (ele e Pai levam sempre meus artigos), me aconselharam a não ficar lá, nem em qualquer propriedade nossa. Argumentei que tinha vindo pra Santa Rita mais para acalmar vocês do que mesmo por mim. Claro, meus artigos (e você é testemunha) foram todos pensados, analisavam a conjuntura objetivamente, sem carregar nas tintas numa hora aliás de geral passionalidade. Criticavam de passagem o militarismo intrometido na política, nunca os militares. Por que afirmei que o lugar deles era no quartel? Mas isso é um truísmo. Quantas vezes não insisti também na necessidade de cabeça fria, moderação de parte dos civis? Nem ele, nem Pai consideraram o que eu ponderava. Desconfio que Monsenhor no fundo não me leva muito a sério.

 

                        O mais acertado era eu ir mesmo com ele, isolar-me em local seguro e insuspeito até que a situação se definisse, fosse outro o clima, com a posse do dirigente definitivo. Ri do adjetivo definitivo. Monsenhor, que é fino: – Ah, filho! os de farda não arredarão pé tão cedo.

          Mal  amanhecia,  de  jipe,  veio  o  novo coadjutor, Padre Léonard, batendo palmas e trauteando: – Frère Jacques! Frère Jacques!  Dormez vous?  Dormez vous? É um compridão que não veste batina, fotógrafo em suas horas, um dia te falo desse rapaz francês. Quem chorou foi Mãe Jovelina: – Vai cum Deus, meo fio, que os home são ruim.

        Aqui  vegeto, no sítio do vigário. Manhãzinha, levo de-comer pras codornas e marrecos de Pequim de Monsenhor. Depois do bom desjejum mineiro, me ocupo riscando o projeto do novo Centro Comunitário. Pediu-me que não faça coisa faustosa, e sobe quase todos os dias pra ver como vai o trabalho. Às tardes, pego um livro, logo o abandono, fico ouvindo as sibipirunas do pátio estalarem ao sol as suas favas, enquanto reflito em mil assuntos, em nenhum. O melhor é à noite, quando converso  com o tal jovem coadjutor.

         Faz quase três anos, quando escrevi o autorretrato pra revista, dizia que desejava aos quarenta começar a escrever. E, Nestor, fui cair logo no jornalismo político. Que ironia! Só me falta, depois que o Golpe se estabilizar, reunir aquilo tudo em livreco e aparecer posando de analista político, hem? Mas já te ouço: nem haveria ambiente, estão encerradas, digo, enterradas as conquistas sociais e democráticas, atrocidades virão. Apenas um detalhe me consola: entrei e sai sabendo o que fazia, embora amigos – não você nem Seroa naturalmente – estarão me criticando. Reafirmo consciente que de nada devo me arrepender. O que vier, se vier (um processo?), não está em minhas mãos evitar. Me defenderei, saberei me defender.

         Basta.  Letícia  mais  uma  novicinha  vieram  de Dois Corações especialmente pra me visitar. Uma tarde como há muito seu primo não conhecia! Demoraram-se, tomaram lanche comigo, toda uma tarde de encontro descontraído. Letícia relembrou a carta em que eu tanto combatera sua entrada para as Mercedárias. A novicinha, calada mas interessada, escutava. Letícia afinal sugeriu que se eu me aborrecesse no sítio, vinha me buscar, podia ocupar o quarto de hóspedes da Casa. Então rimos a bom rir. Muito grave e olhando para os lados como uma conspiradora, a novicinha falou: – Sim, sim, Irmã, Dr, Arnóbio pode esconder-se lá... disfarçado de jardineiro. Uma coisa me alegrou. Pude observar que Letícia está contentíssima com suas atividades universitárias. Você sabe que as Mercedárias fundaram uma Faculdade de Letras. Pois é ela a vice-reitora, e ainda arranja tempo para lecionar, dá-se de corpo e alma às novas funções.

       Cá  na  província,  escusado dizer, todos da banda da situação. Tomar terra dos legítimos donos, sô! Comunista é nas grades! O Jornal da Serra tirou edição-extra no dia 1º de abril com esta linda manchete que é a voz geral: MINAS MAIS UMA VEZ COMPARECE.

         Nestor, quisera me encontrar a mil léguas daqui. Penso em Margarida, nos adolescentes. Abraços.

                                                                                   Arnóbio.

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