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52 ASSUMIR. Avaliava meu primo toda a significação daquela palavrinha? Sugeri a ele a mediação de minha mulher. Ela procuraria Jovita, conversariam, sondava-a.

     Arno  não se mostrava interessado nem desinteressado. Estava abúlico, tinha um olhar glacial. Falou um vago: é, se ela quiser...

       Contei  tudo  a  Margarida. E se ela fosse procurar Jovita? Que podia fazer, Nestor? Jovita era pessoa tão difícil. Capaz até de recebê-la mal, eu bem sabia que entre ambas havia pouca afinidade. Melhor o casal resolvesse lá os seus problemas, afinal deles, só deles.

      Com   espanto  para  Arno,  Jovita  voltara   para  o apartamento com a filha. Tinham passado a viver entre as quatro paredes sem se falarem, apesar de tentativas do marido. Arno passou a escrever bilhetes que deixava sobre a mesa do café para se entenderem, ela não respondia ou na mesma folha de papel rabiscava: NÃO.

      Eu: Margarida, faça alguma coisa. Passe na butique da Visconde de Pirajá como por acaso, e tente.

 

        Adivinhou Jovita o motivo da presença de minha mulher. Conduziu-a para o pequeno escritório no alto da loja.

        E  Margarida  encontrou uma mulher ferida, uma esposa cheia de indignação. Sabia-se difícil, deparava-se com uma criatura dificílima. Não ousou palavra.

           Jovita de pé falava sem interrupção: 

        – Nessa  hora,  Margarida,  eu  compreendi. Não estou fazendo de mulher sofredora. Compreendi muita coisa. Vivíamos ultimamente como dois estranhos. Só eu o procurava, que raiva de mim agora, desculpe estar com estas particularidades. Mas o telefonema e depois a conversa pessoal com Irema me fizeram cair as escamas dos olhos. O que significava eu para ele? nada. Eu o odeio, desperdicei minha vida...

           – Senta, senta, Jovita.

      – Hoje compreendo. Meu erro foi desde o começo do casamento, aceitar o comportamento dele. Aliás reagi, mas não adiantava. Garanto que nem você nem Nestor, ninguém o entendeu nunca. Arno, no fundo, é um boêmio. Um boêmio completo. Só faz o que lhe agrada, eu não existia, a filha não existia para ele. A única atenção era me levar ao cinema, às vezes ao teatro, subir para Santa Rita. Relacionamento com minha família? Nenhum esforço nunca da parte dele para uma aproximação maior. Parece, parece não, ele desprezava os meus. Não  fez  o tempo todo senão viver a vida dele, ao gosto dele. Os amigos. Ah, os amigos. Esses é que eram importantes. E eu, um idiota, fui aceitando, me dava conta mas aceitando. Você sabe como ele é insinuante, simpático quando quer. Agora me troca por outra mulher, Margarida! É até humilhante para mim falar isto...

          Chorava.

          – Jovita, olha as balconistas. Calma, calma.

      Margarida  reparava  em  seu  rosto emagrecido. Que sentasse no sofá; ela estirou-se. Não, não defendia Arno, compreendesse, pensava somente no bem de ambos e de Aninha.

           Jovita ia serenando.

           –  Eu sei, eu sei. Obrigada por você ter vindo.

           Porém  logo,  cheia de autopiedade, recomeçava:

        – Há gente que me condena, minha amiga. Que eu não gostava de receber, sendo ele tão sociável, ah, sim! acredita em amigos. Que não assistia às conferências de meu marido. Que não o acompanhava em nada. Então no começo do nosso casamento eu não andava por toda a parte com Arno?

          – É verdade.

          – Nosso melhor tempo foi aquele, quase dois anos em São Paulo. Assim mesmo em casa tinha pouco a companhia dele, sempre de livro na mão. Aqui no Rio eu, com duas butiques, onde ia arranjar tempo para coisas de sociedade?

           – É verdade.

        – Eu sei, eu sei. Muitos me tacham de orgulhosa. Já no colégio as Irmãs diziam isso. Orgulhosa, é o meu jeito. Não me sinto superior a ninguém.

           – Claro, Jovita. É o meu jeito.

          – Você ao menos me entende. Aliás já me acostumei com incompreensões de toda a sorte, de todo o mundo. Na Faculdade repetiam que eu não partilhava dos movimentos, que eu era pra-dentro. Cada um é o que é, pronto, que fazer?

       Enxugava as lágrimas. Havia revolta em sua voz, e raiva. Margarida sentia que não podia mais, só pensava em partir. Súbito, Jovita se levantou.

         – Já sei o que devo fazer! Me desculpe por tudo, Margarida.

      Foi ao espelho, ajeitou o cabelo e retocou a maquiagem, descendo com ela para a butique.

       O  telefone  tocou. A  balconista  que  atendera:  É  pra senhora, o Dr. Lincoln.

         Margarida  despediu-se  depressa,  enquanto  Jovita  subiu para atender na extensão.

 

       Dia seguinte, sobre a mesma mesa, Arno encontrou este escrito 

 

ARNO,

             Chega, Além de ridículo, isto de bilhetinhos não pode continuar. Pelo menos de minha parte, porque da sua é o que bem conheço... Em reunião de família ontem , decidiu-se que nos separemos. Uma vez se perdoa, duas não, guarde suas razões, eu guardo as minhas. Nossa separação de bens de casamento foi a coisa mais acertada exigida pelos meus. Não quero, nem preciso, nem reivindico nada, só lamento é minha filha, a situação dela em relação ao pai. Fica comigo, exijo que fique comigo. Você terá os seus direitos sobre ela, não vou interferir, aliás isso por Aninha, quero o melhor para ela. Quanto a mim, enquanto vivemos juntos, declaro-o com orgulho nunca sequer me passou pela cabeça a ideia de ser infiel ainda que assédios não faltassem. Bem verdade que não entendia sua ausência de ciúmes neste particular, o que acabei entendendo agora. Que signifiquei eu para você? me pergunto. Fico em dúvida se você, no fundo, não é mesmo um grande egoísta... Mas enterremos o passado. Fui forte, estou viva, graças a Deus. É isso mesmo que já lhe deve ter chegado aos ouvidos: Lincoln. Espero encontrar com ele o que infelizmente não encontrei com você. Tenho certeza que sim. E esta é a parte final do que lhe queria comunicar. Seja você também feliz, se puder.

Jovita.    

          Gosto de seu pai, ele sabe disso e Aninha o adora. Vou escrever para ele ou até o visitarei, não quero que com a sua versão dos fatos ele guarde uma impressão equivocada de mim.

          Veio procurar-me na Universidade. Senti-o humilhado ao me passar a carta. Certo, aquele desabrimento, aquele dizer tudo, ofendia-o.

     – Não tem que se sentir humilhado nem ofendido. Nessas horas, mulher não tem medida, meu caro.

     – Jovita é no fundo uma pessoa moral, o que no início do casamento me aborrecia. Tentei, só me aborrecia mais, abrir umas brechas na fortaleza, desisti. Nosso casamento há muito já estava acabado...

        – E agora?

       – Agora. Desquite é a saída. Eu sabia que este momento ia chegar. Nem te contei tudo. Pois juntou a carta que eu naquele tempo escrevi pedindo perdão pela minha ligação com a soprano italiana.

       Calávamos.

       – Uma coisa nisto tudo principalmente me entristece, Nestor. Minha filha. Penso nela. Educada amanhã naquele meio de burgueses empedernidos. Já a vejo no futuro só me procurando para pedir dinheiro.

       Acrescentou amargo:

       – Já sabe. Meu endereço agora é Praia Vermelha.

 

 

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Meio-dia de sábado e sol

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