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49 SENTADO AO LADO do motorista Joel, Zé-Geraldo silenciou nos primeiros minutos: cravava no boletim de turfe nomes de cavalo duplas, placês, para suas apostas de domingo.

        – Vinil ou Cravinel, queridos?

        Soraya: Eu marcava Cravinel.

        –  Certo.

    A seguir guardou o folheto e ninguém mais o segurou, estendendo pra trás o braço com saliente tatuagem, a falar, a opinar.

    Nas paradas, encontrava invariavelmente um conhecido. Gordote, vinha bamboleando o corpo vigoroso mas lépido para o carro, onde havia que esperá-lo. Pagava a demora cada vez com um caso pitoresco.

        –  Gente, olha só o que me acontece. Um capenguinha me perguntou se eu era corredor da São Silvestre. Disse-lhe que arquiteto. Fez um gesto de desdém como se eu fosse um pária.

        Soraya: Você gosta de viver, não, Zé-Geraldo?

     – Adoro, querida. Meus deuses? Arquitetura, Money e as Divinas.

        Arno: Que acha da crise, Zé-Geraldo?

     –  Crise? Você exagera em seus artigos da Última Hora, doutor.

        – Você os lê até o fim?

        –  Nem sempre, confesso, e gargalhou.

       – De garoto escutava o velho dizer que o Brasil ia péssimo, que o Brasil ia quebrar. Ficava só imaginando como seria o gigante quebrando e o estrondo. Crise! Não enxergo crise nenhuma! Projetos não me faltam, lá em casa tudo ótimo. Francamente... Melhor que esta vida só esta vida.

 

     Perto de Santa Rita pararam no Poço da Pedra. Prazer de bebericar água de fonte na concha da mão. Logo Zé-Geraldo sumiu mato adentro. Reapareceu, radiante. Topara aquela casa de joão-de-barro!

     – Que  maravilha  de  arquitetura,  Zé-Geraldo!  exclamou Soraya.

        Pousou-a nas mãos dela:

        – Meu presente de noivado, coração.

        Encontraram a Arca em festa.

    Aquilo  foi  uma  surpresa  para Arno. Tratava-se do encerramento de uma Semana Ruralista do Ministério da Agricultura. Missa pela manhã, distribuição de certificados e agora, na tarde azul e sol daquele sábado, o grande churrasco patrocinado por Tio Justo. Parecia reunido ali o município inteiro. Fazendeiros, líderes rurais, sitiantes, dirigentes de clubes agrícolas, professorinhas com seus alunos de uniforme, trabalhadores, conhecidos, desconhecidos, penetras. Ruidosos, circulavam no amplo espaço dos fundos da Fazenda. Bandeirinhas coloridas ao vento. Um conjunto regional sob o toldo de um palanque animava a festa ao ar livre. Os alto-falantes transmitiam. Reporterzinha da Rádio arrastando comprido fio enviava notícias do evento e os números musicais para o Centro da cidade. Anunciou com ênfase a chegada dos simpáticos participantes do Rio de Janeiro embaralhando nomes.

     Arno: Que felicidade, Soraya, termos chegado depois dos discursos.

    E foram achar Tio Justo entre fazendeiros, agrônomos, veterinários, técnicos agrícolas, sitiantes e povo da cidade. Envolvido no acontecimento, pouca atenção pôde dispensar aos recém-chegados. Desculpou-se. Que Arno fizesse as honras da casa à moça e ao noivo. Falava, quando solicitado por um líder rural chamando-o afoito para a cerimônia da árvore, acrescentou que ficassem à vontade.

       – Vou plantar o pinheiro comemorativo do evento! disse com singeleza.

     – Zé-Geraldo, sentindo-se de pronto liberado do papel para que fora convidado, entregou-se à geral alegria e ao chope.

 

       – Eis-nos, graças  à boa Ceres, dois colegiais em férias.

      Soraya: Então me leva pra conhecer tudo, cada canto, Arno.

      – Primeiro quero apresentar você a uma pessoa.

   Drigiram-se  para  o  casarão  residencial de vidraças verberando na luz intensa. Na sombra das arcadas pisavam em crespas folhas de amendoeira que o vento impelira na manhã.

   Os olhos grandes de Soraya tornavam-se maiores numa curiosidade quase indiscreta.

    Num  quarto do  térreo  a amiga viu-o abraçar-se a uma velhinha de branco, muito asseada, num abraço e beijos que não acabavam.

     – Mãe Jovelina, meu amor!

     – Arninho, meo fio! meo fio!

    Apresentou a moça do Rio de Janeiro, Soraya beijou a velha dizendo-lhe amabilidades.

      Subiram por uma escada interna, de passo que lhe explicava quem era aquela criatura e o que significava para ele. Ela estava presente em todos os momentos de sua vida desde os mais pequenos. Começava logo de manhã, ao servir o café a ele e à irmã. Mãe Jovelina migava o pão na xícara. De repente ele abria num berreiro. Acudia Mãe Jovelina querendo saber o que acontecera. – O pão bebeu o meu café! Ela começava tudo de novo.

      – Viu só que velhinha linda, que lucidez nos seus noventa?

      Soraya: Que seria do mundo se não houvesse pessoas como sua Mãe Jovelina...

      Já no salão, móveis e objetos, aposentados de suas funções anulavam-se na condição de coisas, e ela sentiu-se de pronto rodeada em silêncio. Uma presença lhe falou: o retrato a óleo de Ana Lídia.

      – Nossa! Como você é parecido com sua mãe... e se deteve.

      – É o que todos dizem.

      Mas enlaçando a amiga pela cintura num gesto brusco:

      – Vamos adiante.

      Ela compreendeu que tocara em algo muito fundo.

   No quarto de Tio Justo, espantou-a o ruma de livros à cabeceira. A curiosa aproximou-se, havia-os de agricultura, indústria de laticínios, erosão, ecologia.

     – É isso aí. Meu pai gosta de se atualizar em coisas técnicas.        Venha ver o meu velho quarto.

     Desta vez foi Soraya quem se emocionou.

     Um  espelho grande na penumbra refletiu ao entrarem os dois rostos. Voltando-se, ela fitou-o ternamente, ele envolveu-a em seus braços e esqueceram-se ali e ao mundo num longo beijo.

     Depois Arno escancarou a janela, a claridade e o ruído da festa dos outros dissipou o mistério.

    Perturbados pelo falatório e pela música do alto-falante, saborearam o churrasco ao ar livre. Joel, pousando o radinho-de-pilha onde escutava o seu futebol, fazia questão de servi-los.

      Soraya: O centro de Santa Rita fica muito longe?

     Arno: Quinze minutos. Partamos! Você vai conhecer a minha cidade.

 

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Meio-dia de sábado e sol

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