Xavier Placer
48 VOLTOU LOGO com refrigerante. "Só lhe falta o chador", pensei. E compreendi a paixão do meu primo. Reuniam-se naquela mulher morena heranças de sangue árabe que a contribuição bugre dos Arcoverdes não perturbara, talvez até aperfeiçoara... Não sei se leu meu pensamento, sorriu naturalmente e sentou.
– Nestor, gostei ontem de ser apresentada por Arno a um amigo de vocês, o comandante Seroa.
– Realmente, uma figura. Está aí um filho de judeus sem vocação nenhuma para segurar dinheiro. A irmã, Saloméa, é que é uma financista de marca.
– Que homenzinho! Até aquele topete lhe assenta, não é?
– Aquele topete é pra crescer. O Seroa daria tudo pra ser uns centímetros mais alto. Ah, mas se você gosta de tipos, Arno tem uma coleção. Precisa conhecer o Sadhoc. É a criatura dos truísmos, a propósito ou não. Nós o apelidamos de Ad-hoc.
– Só notei no Seroa uma certa singularidade...
Arno: Essa singularidade existe. E isso se acentuou principalmente depois da crise.
Ela espantou-se.
– Que crise? Esteve doido?
– Quase. Andou bem perto quando jovem. Largou o Direito que cursava comigo na Nacional, fez-se controlador de voo, depois aviador.
– Nessa fase, Soraya, ele quis matar o nosso Arno.
– Que horror! Me conta isso, Arno.
– Na Faculdade, primeiro aluno. De uma hora pra outra encasquetou que não sabia devidamente matemática e que isto o inferiorizava em família. Na tribo nele, quem não falava pelo menos cinco idiomas e era forte em matemática era débil mental. O Sr. Eleakim pai, horas antes de morrer, ainda resolvia na cama uma equação... O nosso Seroa! É judeu carioca mas não quer nada com a sinagoga. É culto mas desdenha a cultura. É pela revolução social mas irrita-se com os proletários. Enfim, julga-se um grande amoroso, mas não se fixa num só amor.
– Sim, a crise. Vocês não me falaram da crise.
– Aí, mergulhou de cabeça na geometria não-euclidiana. Vivia trancado no quarto convencido de que só a racionalidade pura resolveria todos os problemas. Até que um dia veio me matar.
– Que horror!
– Horror? o Sr. Nestor nega, mas foi cúmplice no lance. Naqueles dias, enviamos pro alucinado esta brincadeira:
Meta-pata-físico
estás, Seroa.
Não é uma boa!
Com quantas tábuas
se faz uma canoa?
Ele estava pior do que imaginávamos. Eis que ouço bater à porta uma tarde. Vou abrir e o homem em pessoa a me apontar um 32. Salvou-me a presença de espírito. Assestando os dedos em forma de revólver, perguntei: – Que marca é o seu, amigo? Esta reação desmoronou-o, caiu nos meus braços chorando.
– Ah, eu é que não viajava em avião pilotado por esse moço.
– O quê? Ele precisava ouvi-lo falando de profissão, hem, Arno? Diz que sente uma profunda emoção ao penetrar na cabine e sentar frente ao painel. Que a aeronave é uma parte dele, ele uma parte dela. A alguém que o aconselhava submeter-se a análise, respondeu: – Nunca! se o divã do meu tio Freud me curasse, eu ficaria burro.
– Um comandante prestigiadíssimo. Aquela do revolver não era ele. E um belo dia me confessou que a Matemática, como a Ciência e a Filosofia, está cheia de buracos negros. Fechara esses livros. – Escolhi, meu querido Arno: fico com os buracos negros da vida.
– Então não é o ironista que aparenta? observou Soraya.
– Um humorista. O bom Seroa diverte-se. Só perde aquele jeito quando as mulheres lhe falam em casamento. Que o diga aí o Nestor. Acredita-se um grande amoroso, enrola-se cada dia em novos casos.
Soraya: Pessoa tão singular deve escrever, ele não escreve?
Arno: Ah! Negou-se a responder uma vez sobre as dez mais belas palavras da língua portuguesa. Despachou o rapaz da enquete com esta: – Não respondo porque vocês não vão publicar. As dez mais belas palavras da nossa língua, meu jornalista, são pornográficas. Mas sim, aos vinte anos, ele publicou uma novela.
– Novela? Imagino coisa bem original...
– Desde o título: Lilith & o Sr. Golem. O Seroa é homem inteligente. Tem a felicidade de não ser um puro intelectual. Conhece tudo, o que não conhece, intui. Não se fixa em nada, é um grande preguiçoso pra escrever.
– Gostaria de lê-la, Arno.
– Pois você terá o meu exemplar da novelinha.
Eu devia partir. Soraya levou a bandeja para dentro.
– Vou pro Leblon. Te deixo em casa, Nestor.
Tentei falar sobre a situação de Arno com Jovita. Ele me ouviu, observou cordato que era uma situação complicada.
– Estou dividido entre Urca e Leblon.
– Noto você bastante feliz na Urca.
– Uma felicidade não isenta de sombras, acredito, meu primo.
O sinal vermelho fechou. Calávamos. Quando arrancou, pedindo a ele que não quisesse mal, ponderei que estava metido num jogo perigoso.
– E eu não sei? Seja lá o que tiver de ser.
Outra pausa, desta vez mais longa.
– Afinal Jovita...
– Preferia falar do Leblon. Sinto-me tão satisfeito com tua visita.
– Então falemos da Urca.
Ele: Ótimo, você sempre meu amigo. Ah, Nestor, as poucas horas que passo com Soraya, fogem. Tudo que se refere a mim lhe interessa. Levei-a outro dia a conhecer nosso escritório. Notei que estranhava o luxo das instalações, tanta sala, tantas divisórias envidraçadas, mas calava. No gabinete do Arézio, que estava ausente, não se conteve: – Que decoração! Observasse ela a cinta branca circundando a foto aérea das terras no Planalto Central do ilustre chefão, eu disse: – O quê? Do tamanho de um município! O Dr. Arézio Santiago não é trabalhista? Ah ingênua!. Expliquei-lhe que era tão trabalhista como gaúcho, tendo ido criança para o Rio Grande. Agora tinha vergonha de se declarar goiano.
– Possuímos um tipo desses na Universidade.
– Soraya insinua com certo tato que gostaria de conhecer o cenário de minha infância mineira. Você que acha da ideia de levá-la à Fazenda? Ela ia adorar a Arca.
Silenciei dois minutos, ele também.
– Vai sim. Arranja um conhecido pra fazer de noivo em atenção à perspicácia de Tio Justo.
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Meio-dia de sábado e sol
