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47  NAQUELE  SETEMBRO  em  que se haviam conhecido, Soraya morava num pequeno apartamento na Esplanada do Castelo. Arno não se conformava que ela pudesse viver ali, sobretudo com a zoeira daqueles aviões no Aeroporto Santos Dumont chegando e partindo. Ele pretextava que já se habituara e que os vizinhos eram ótimos.

     Arno não dizia nada. Tinha um apartamento na Praia Vermelha com um inquilino que quase um ano não lhe pagava o aluguel. Entrou em acordo amigável, reouve o imóvel, e convidou a amiga para mudar-se para lá.

        Um fim de tarde, saindo da visita a colega recém-operado, eis que os avisto à entrada de um edifício.

         Viu-me também Arno, correndo pra mim de braços abertos.

Apresentou-nos:

        – Este, Soraya, é meu primo Nestor, de que tanto lhe falo. O meu melhor amigo.

         A jovem mulher de olhos sarracenos:

        – Eu desejava tanto conhecê-lo, e de repente acontece. Que prazer!

        Arno: Agora quero que se tornem grandes, grandes amigos.

      Ela: De minha parte, já sou, Nestor! e pousou em mim os redondos olhos pestanudos.

        Subi com eles no apartamento.

 

        Havia plantas por todo canto.

        – Mas isto aqui é um jardim suspenso! eu disse.

       E como me aproximasse de uma pendente,  tocando-lhe as folhas, Soraya gracejou:

        – Não é desidratada não. Adoro plantas mas naturais.

      Arno: Essa aí, Nestor, é uma árabe degenerada. Gosta de matinhos, e detesta jóias. Me priva do prazer de lhe oferecer tais presentes.

        Abrindo a porta envidraçada:

        – O apartamento não é grande, mas a vista do mar...

       Pegou na mesa dois papeluchos. Agora que escrevia na Última Hora recebia volta e meia cartas anônimas. Que eu lesse!

         À Máquina, uma catilinária xingando-o de articulista de fancaria, marxista fanático e por aí.

        – De aplauso, nenhuma mensagem?

        – Nenhuma.

        – Você bem podia ignorar esse lixo.

        – Só guardei pra te mostrar. Esquece.

      Viemos para as poltronas da sala. Soraya havia soltado a cabeleira, que lhe emoldurava o rosto comprido. Sentou-se a seu lado, discretamente segurando a mão de Arno.

      Era evidente que estavam ambos contentes com a minha casual presença, e ali quedamos a falar do passado, de nossas viagens pelo Nordeste, de Pernambuco.

         – E você, primo, com a garotada na feira de Garanhuns.

        Soraya: A minha cidade natal. Ah, que saudades! Vim com doze anos pro Recife, nunca mais voltei lá, mas não a esqueço.

     Meu primo:  Garanhuns,  não me  fale. Eu soltando na ribanceira o gaiolão de pintassilgos, você espantado com meu gesto, a garota moreninha de olhos de jabuticaba: Moço! Moço! o senhor é muito bonito soltando os bichinhos e que saiu correndo...

      – Maior alegria foi quando você pagou alfenim pro bando alvoroçado.

         Soraya, um tanto irônica:

        – Bonito! E foi na minha Garanhuns. Só gostaria de ter sido a garota dos olhos de jabuticaba...

         Ressurgido e reconhecido, aquele momento crescia do chão antigo e, alçando-se ante nossos olhos, era um fragmento vivo grato de revisitar.  – Silenciávamos.

       Soraya:  Nestor,  vem  conhecer, como diz Arno, a minha tenda árabe de trabalho!

 

       Contra  a  parede  da  saleta  junto à janela, a tulipa da lâmpada inclinava-se sobre a prancheta. Duas cadeiras desapareciam debaixo de revistas, álbuns, desenhos dobrados, rolos de papel vegetal.

        Um projeto se destacava sobre o fundo azul da prancheta, que a régua larga interrompia horizontalmente. Explicou-me que se tratava de um risco para acréscimo de andar de cobertura num edifício da Barra.

   – Penso que encomendas dessas não são das mais interessantes.

       – Realmente, não são. Miúças do ofício, como se diz lá pelo meu Nordeste. 

     – Nada disso, Nestor. Soraya vive arquitetura as vinte e quatro horas do dia.

        Aproximei-me da estante apertada de livros onde se via Le Corbusier e sua gravata-borboleta numa foto com um grupo de arquitetos brasileiros entre os pilotis do palácio de MEC. Entre a livrarada, vi o grosso volume De Architectura de Vitrúvio. Puxei-o curioso.

          Arno: Está conhecendo? Veja a dedicatória. Aquele presente de Mons. Brasil em Santa Rita.

      Ela:  Bonita edição espanhola ilustrada, não é? Desejei um tempão essa obra, fiquei tão feliz com o presente.

      Soraya  quis  saber  detalhes  sobre  a  origem do volume. Ouviu-me sorridente. Ah, tudo que se referia a Arno lhe interessava demais. Depois falou com entusiasmo de uma retrospectiva de maquetes, exposição coletiva que se realizaria no CREA, em que ambos apresentariam trabalhos antigos.

      Arno: Eu ainda não sei se apresento.

      Soraya: Vai participar, você me prometeu.

      Anoitecera. Lembrei que eram horas. Ela pediu que eu ficasse mais um pouco e pedia com um olhar a que era impossível dizer não.

 

 

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Meio-dia de sábado e sol

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