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46 – EM SETEMBRO; ano passado, Nestor.

        – Então veio com a primavera.

      Repetiu com a maior gravidade: sim, com a primavera. Por acaso.

      – Por acaso passei numa exposição de maquetes no Museu de Arte Moderna. Ia saindo, quando reparei na mesinha uma pilha de catálogos. Imaginara que aquela mulher elegante que vira no recinto deserto fosse uma visitante. Parei indeciso, ela caminhou pra mim, que perguntei se não havia  ali alguém. Idiotice minha, é que eu queria um catálogo. Ela, sorridente: – Eu, às suas ordens. Encantado com aquela espontaneidade, falei da mostra e acrescentei que me interessava levar o catálogo. Me entregou um da pilha. – Paga-se?  – Gentileza do MAM aos realmente interessados. Voltei a percorrer a exposição, agora acompanhado, pois eu falava do impacto que certa maquete me provocara, e indaguei se ela era da Casa. – às vezes. Sou arquiteta. – Arquiteta?  e nos olhamos estranhamente. Logo fiquei sabendo que era pernambucana, formara-se no Recife. Viera depois para o Rio e trabalhava com os irmãos MMM arquitetos. – Coincidência. Sabe que também sou formado na especialidade? falei. Ela: – Então não se? Assisti a conferências suas. – Ah, de repente me lembro de ter recebido os seus cumprimentos. Mas que o conhecimento me parecia vir de mais longe, muito mais longe. Ela tomou por um galanteio, e sorriu enquanto de novo nos entreolhávamos. Não é singular?

         –  Singularíssimo. Como na ficção.

         Conhecia meu primo. Como naquela hora porém não o vira. Falava sem descontinuar. Pensei em esfriá-lo como uma observação, não dava oportunidade.

        – Ela capta tudo por intuição, numa feminilidade em estado puro. Leu tudo já sobre arquitetura. Quanto à pessoa, que segurança, que classe! Chama-se Soraya.

         Larguei a ironia que me bailava na mente:

         – Bonito nome para uma arquiteta.

      –  Não é? Da parte  da  mãe, Arcoverde. O pai libanês. (Levantou-se abrupto) –  Vou te mostrar o retrato.

     Procurou com empenho a Módulo onde, ia dizendo, ela aparecia num grupo. Pena! esquecera a revista no escritório.  

         – Você me apresenta um dia. Se acontecer...

        – Ah sim! O retrato também pouco diria. Quero que você a conheça. Sobretudo o temperamento, você compreende? Reserva e espontaneidade, ímpeto e doçura. E pra maior encanto, uma voz aveludada, rouca. A voz dela é um afago e há um abandono em seus braços compridos. De repente, diz frases assim:  – Coitada da mulher! Ela só tem o corpo e o direito de ser louca. Mas a mulher, para vocês homens, é a festa. A ela foi confiada a guarda da alegria.

          O telefone tocou. Precipitou-se:

          – Ah, se fosse ela!

          Pousou logo o fone. Engano.

 

         – Eu sei que no fundo você está me condenando, Nestor.

         – Mas se me limito a ouvir.

         Conhecia,  conhecia  bem  aqueles  silêncios  mineiros. Que não acusasse, o problema não era julgar, mas compreender. Lutara, tentara esquecer.

         Fumando, fumando sempre:

       Quer saber? Penso muito a sério, penso em contar tudo a Jovita pra me salvar.

         – Loucura. Vá devagar.

     – Nestor, não me agrada uma situação dupla. Você me conhece, você sabe: sou homem de uma só mulher.

         – Até certo ponto.

         Não atentou para o meu sorriso.

       – ... e depois este Rio é muito pequeno. Não gostaria que Jovita viesse a saber por terceiros. Hem?

         – Você é maior de idade.

         – Mas estou confuso, Nestor.

         – Espere, homem, não cometa uma tolice.

       –  Certo. Devo esperar. Eu sabia que meu primo me diria uma boa palavra. E baixo, quase que só para si: Esperar, esperar.

 

      – Que tramam contra a ordem esses dois intelectuais? exclamou Margarida surgindo com Jovita na porta.

    Sentaram-se. Preocupavam-se ambas com o possível programa da noite. Tínhamos entradas para o baile no Bola Preta. Mas o tempo ameaçava qualquer programação. Nas cidades vizinhas, informavam radio e tevê, na serra das Araras ainda chovia muito, rompera-se parte da represa da Light.

           Arno. Talvez essa tormenta nem alcance o Rio tão forte.

       Eu: Pode diluir-se pela Baixada. Parece que é o que os entendidos chamam de tormenta tropical.

      Acabou  a  conversa nos nossos ingênuos carnavais de infância.

 

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Meio-dia de sábado e sol

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