Xavier Placer
42 PRIMEIRO DE UMA SÉRIE, este, a pedido do redator-sênior da revista, o auto-retrato de Arnóbio –
Um dia eu tive quinze anos. Pisava a terra com pé firme, mirava o Sol e tudo na confiança, deslizando no mundo concreto da vida. Grande era ela? Do tamanho do meu coração intrépido Arnóbio o tempo me pertencia. Cada manhã entregava um dia novo e eu dono daquele ouro. Amava, era amado. Eu vivia, no inteiro abandono, na perfeita alegria do jovem animal otimista.
Nasci e cresci em Santa Rita da Serra, MG. Obscuro lugar mas pelo qual tenho um fraco enorme. Não se trata de agarrado ao meu condado nativo fazer dele o universo, apenas fundo ali, chão nutriz, as minhas raízes, a minha identidade. Não é a toa, meu redator, que se flui a presença de cada coisa longamente no remanso de horas sem relógio...
Viajei meu país. Viajei o estrangeiro. Vi cidades. Vi rostos. Vi notáveis. Monumentos e espetáculos. Fachadas visionárias e sujos portos. Conheci subúrbios e revoltas: mundo. Alguma coisa ganhei, passaporte para certo descortino. Livros me chegaram às mãos, digeridos mal ou bem, como pude, neles acreditando encontrar as respostas. Eu era perdidamente livresco. Poetas, romancistas, pensadores faziam o encanto da minha juventude aplicada. Hoje, claro, estão em seus devidos lugares.
De todo modo, me sinto do meu tempo. Tempo de desmistificações, de redistribuição de energias após tanta sublimação perversa. Digam outros mal do século, eu não. Aliás paguei ao progresso o meu tributo... por aí vou depois do desastre de carro com a minha cicatriz de honra.
Nossa NRB exige particularidades. Certo, sou pessoa real, não de ficção. Bacharel e casado – uma filha – metro e setenta – cabelos grisalhos – prefiro roupas claras – não dispenso meu cachimbo –escrevo diretamente a máquina – gosto de mandar e de receber cartas – o mar me atrai. Nessa ordem: durmo pouco, quatro cinco horas. Então leio, ouço músicas, fumo, vou à geladeira... A noite é grande. Seus gatos desvelam segredos, não dispensam os duendes. Ainda escreverei sobre os prestígios da noite. Deus? Para mim é a Beleza. O resto, Mistério. Mas vale a pena ter vindo uma vez, fitar o Sol.
Como era de moço? Espigado, mecha caída na testa – conhecem o tipo – era o adolescente irritante. Desassossegado e insatisfeito. Considerava-me complexo, orgulhava de ser diferente, e não passava de um complicado em meu puro autismo. Ah, daquela singularidade nasceria em mim a obra. Tanta vitalidade não se ofendia com obstáculos, eu era as coisas. Eu mesmo e os outros. Habitava o centro e nada me abalava. Fui muitas vezes, sem escrever um verso, verdadeiro poeta.
Segui o Direito para ver meu pai compensado de não ter rematado o seu bacharelado. Por mim me teria formado em Arquitetura, o que fiz mais tarde. Embora as circunstâncias me permitam, não sou um ocioso, não sou um parasita da minha classe. Advogo com competência mas sem convicção. Minha arquitetura é só pros amigos. Possuo dois queridos amigos e confidentes, meu primo Nestor e Eliakim Seroa.
Minhas esperanças desde sempre foram as letras.
No fundo, somente aí entronizei meu sonho. Jovem, admitia a aventura como forma também de arte, arte e conhecimento. Esse, de primeiro, o sentido de minhas viagens. Daí também a ideia absurda por aquele tempo de me isolar num farol. Podem sorrir. É o que digo: na soledade de um farol no mar alto e nele conquistar todos os bens, os da arte e do saber. Então aspirava a tudo abarcar, tudo conhecer.
Tal loucura se esvaiu.
Mas frequentei o meu farol entre recifes sem ir para ele. Urdia a sós devaneios de uma existência de liberdade inteira junto ao meu credo de beleza. Acreditava que ambas existiam no Universo, numa terra de raros, e que lá só esperavam pelos audazes. Estudante, descobri a igualdade e a justiça e atravessei a minha fase de contestador social como tantos – bem-nascidos ou proletários – de minha geração. É que é do meu temperamento me empenhar a fundo nas coisas que amo, as outras (isto persiste), não.
Muito cedo, no ginásio, cometi meus versos e prosa de adolescente; em viagens recolhi material para algum dia; lia tratados de Estética supondo encontrar neles a chave de todas as invenções; moço, concebi um poema de pura paixão intelectual. Tão ciosa em mim a ideia, que não o contava a ninguém. Anos e anos – visionário – edifiquei essa epopeia olímpica, inclassificável. Realizar o meu livro na escrita branca do absoluto, que glória!
Realizei-o? Coisa dessas ninguém realiza.
Observava os companheiros. Ativíssimos. Opiniosos. Renomados, ou procurando ser. Todos fazendo dentro dos modelos da hora. Nem o escondiam, proclamavam até em momentos de bravata. Eu era tão ignorante quanto eles, mas desconfiava.
Quisesse, também teria meu nome na capa de um livro qualquer... Depois (isto mais tarde) nem sei bem por quê, me larguei a fazer conferências neste bom Rio de Janeiro. Talvez a princípio para não dizer não às pessoas, a seguir porque se pensa que se tem sempre que fazer alguma coisa.
Conferências! Quantas pronunciei por aí? A desgraça do conferencista está em começar. Isso, dificilmente se para. Por acaso, parei. Não dei nunca importância a esses trabalhos...
E, de repente, a gente se vê na reta dos quarenta.
Bem pensando me reconheço com alguma experiência, alguma leitura (devia ler menos mas leitura acaba vício); em resumo, há muito tempo aprendiz, gostaria agora de começar a escrever. Alcançarei? Projetos não me faltam. Nem pequenas tentativas, todas aquém do que aspiro, é verdade. Desfecham para mim às vezes grandes esperanças. Confio. Experimento. Outras, largo tudo. Careço de quê? Arrisco esta hipótese: opacidade. Opacidade ajuda, meu redator, lucidez não. A lucidez dissolve quanto toca.
Conheço-a. Ah, doença implacável. Custei a perder o orgulho dessa companheira, divórcio impossível. Não, não é bom enxergar demais dentro da gente nem fora. Bloqueia, esteriliza. Flagelo que mata, principalmente para dentro, agravado em mim por certa angústia de ver o tempo passar.
Para onde – pergunto – para onde me levará? Só não quero ser o homem supérfluo.

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Teu caminho é o romance
