Xavier Placer
40 JÁ NO RIO, num encontro de rua, cobro-lhe o trabalho.
– Ora, Nestor, o Dossiê da Pintura! Li aquele começo que você conhece para Jovita. Não gostou. Foi até motivo de pequena discussão de minha parte. Eu estava tão abalado, tão confiante!
– Que opinou Jovita? Aqui pra nós, ela entende?
– Foi o que lhe revidei, aliás grosseiro. Concordou que não entendia mas na fraca opinião dela eu romanceava muito literário, poético demais. Leitor e leitora de hoje são realistas, reparasse como pouquíssima gente lia poesia. Ela própria, pra não ir longe, era uma dessas.
Observei a Arno que em parte ela estava certa.
– Então são dois.
– Arno não vamos brigar por causa de literatura. Apenas eu não gostaria, sinceramente, de ver morrer o romancista em potencial da família.
– Irei em frente, meu caro. Nada de aura nem epifanias que vocês imaginam. Os dois pintores. Mostro primeiro a existência em comum. Surgem ciúmes terríveis do lado dele. Vêm os conflitos, ela sofre, ele torna-se ressentido, trancado e amargo. Soçobra o casamento, etc., etc. Não vou contar tudo, do contrário perco um leitor.
– Cuidado. O tema ciúme já esgotou em romance.
– Eu não sei? Não vou por aí. Dramatizo um sentimento inconfessado, e mais terrível porque inconfessado: ela é mais pintor do que ele.
– Arno: retiro o que afirmei.
Quando acenava para um táxi, pois me atrasara para as aulas naquela manhã, vimos aproximar-se o colega de escritório D'Aquino. Ali os deixei.
Um domingo à tarde Arno apareceu eufórico em nosso apartamento.
Pusera de lado o Dossiê, pelo menos provisoriamente largara o tema, achara algo dez vezes melhor. Seroa também concordava. Que não abandonasse o primeiro assunto, mas este segundo lhe parecia bem superior. Já começara, queríamos ouvir?
– Minha luta será variar a cada capítulo, mantendo a forma romance; criar situações e personagens vivos; integrar todos, todos os elementos da dramaturgia num conjunto de se ler e ter vontade de reler.
– Somos todos ouvidos, Arno.
E leu-nos –
A escrivaninha da Tia Júlia não era uma arca de apólices amareladas, era um poço de petróleo. Sacrificada às convenções, embora solteirona fora sempre criatura bem-humorada. O Diário que deixou, repleto de pitoresco e de repentes, era um retrato vivo dela. Herdeira, Olívia (25), parou de chorar ao travesseiro a ingratidão da última amiguinha, confiou as ações a uma corretora canadense, largou o pequeno emprego e tratou de realizar o seu segundo sonho: viajar.
No Japão, tudo em horizontalidade – tetos e moradias, arbustos e jardins, caras de olhos repuxados, reverências – tudo lhe pareceu mágico à luz do dia. Não assim à noite. Em Hiroshima, pensando que acabava ali, saiu correndo de quimono para o meio da rua quando viu as paredes do estreito apartamento e objetos oscilando. Sorriso polido, o porteiro acalmou-a num inglês berlitz: na escala Richter o tremor não alcançara mais do que quatro ponto dois. Olívia desistiu de telegrafar à amigos informando que, graças a Deus, estava viva.
Já na imensa América aconteceu diferente.
Aço e vidro, verticalidades! Mergulhou naquele universo nova-iorquino de arranha-céus, shoppings, escadas rolantes, rostos internacionais, elevadores que subiam e desciam como asteroides. De noite percorria a 5ª avenida, embriagava-se de multidão, de luzes, de anúncios. Sempre de táxi para ganhar minutos, comia em automáticos, usava roupas descartáveis, postava cartões, excursionou em grupo. Foi ver nas Montanhas Rochosas as efígies dos presidentes, permaneceu nos Estados Unidos mais do que planejara e, etiquetas de hotéis nas malas, só voltou ao Brasil quando a saudade apertou mesmo. Trazendo a tiracolo uma tal de Joyce, Joyce Maxwell (23), que conhecera num clube feminista, arranhava espanhol e se dizia la más joven abogada of USA.
De torna-viagem, aqui, no condomínio da Barra, Olívia partiu para o seu primeiro sonho: a fonte luminosa.
Olívia abrindo a porta para receber, Olívia no festim de beijos e de faces lisas onde se revia, Olívia de short, cigarro entre os dedos, ouvindo música com a tribo de amigos, Olívia na cobertura do edifício de vinte andares, espaço privativo ajardinado...
A hora grande era à meia-noite. Quando apagados os spots embaixo, corriam todos para o terraço a céu aberto a fim de contemplar a maravilha, a fonte de duzentos esguichos.
Rumor hidráulico calava o tlin-tlin dos cubinhos de gelo nos copos dos pares enlaçados. Cada um, todos só olhos para o espetáculo dos jorros, chicotes d'água em vermelho, azul, amarelo, num balé de instante – som e imagem, ascensão e queda brusca, de novo sempre recomeçando.
Ardia a água em jatos. Dentro deles, chama altiva e forte, fluíam pulsões humaníssimas, obscuras. Ser jovem! Uma vez e nunca mais! Fruir aqui e agora o infinito momento!
Chuvisco de gotículas refrigerava... Belo. Belo.
– Esta a largada, meus queridos.
– Não pedimos guloseimas, Arno. Mas, leitores e felizes, nos cativam situações interessantes, personagens caracterizados, gostamos de saber da humanidade. Não queira fazer a obra impossível.
– Bem, depois dessa cena vivaz pra aliciar o leitor, apresento a estória da Tia Júlia, assunto de alguns capítulos onde a sobrinha aparece aqui e ali.
– Vejo Olívia a ocupar o maior espaço...
– Isso aí. Numa carreira de mulher moderna e as suas singularidades de criatura emancipada. Talvez uma empresária.
– Imagino que sairá algo bom.
– Também espero, Nestor. Agora vou me haver com meu projeto. Realizá-lo como entendo, não ouvirei ninguém. Ninguém.
– Certíssimo. Só deixa eu dizer. Se você fizer ficção silenciando as causas das ações todo tempo, criará personagens-enigmas. Darão pra fazer muita tinta correr... Se esmiuçar as causas, passará por profundo psicólogo. De qualquer forma, primo, concorra ao título de gênio. Escolha, escolha.
– Você...
– Já arrumou epílogo?
– Penso em vários. Não me decidi por nenhum. Talvez minha personagem voltar de mãos vazias ao antigo emprego. Ou casá-la, apagando-se esposa e mãe, no convencional. Seja como for, a derradeira frase dela definiria tal destino. Claro, minha Olívia teve mais de que catorze dias felizes na vida. Diz qualquer coisa assim: – Tudo bem. Mas eu vivi, não vivi, gente?
– Título?
– A Fonte Luminosa.
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Teu caminho é o romance
