Xavier Placer
39 CERTA MADRUGADA o telefone me acorda violentamente. Pego às tontas o fone. Ouço baixinho, misterioso:
– Meti mãos à obra...
– Ahannnnnn?
– Duas personas... Dossiê da Pintura, novela poética.
– De onde fala?
– Alô! Alô, Nestor! Sou eu. Você boceja? Está dormindo, homem?
Abruptamente me senti reposto na realidade.
– Eu não devia ter ligado, perdão.
Ainda mal desperto do sono de um dia inteiro a lecionar, me recompus dizendo a meu primo que falasse. Quis ele desistir, insisti que não. Atendeu logo. Descobrira um novo filão que intuíra naqueles dias de serra, rasgando o roteiro primitivo, aquilo de planos só serviam para gelar a imaginação. Ia improvisar o tempo todo, certo?
– Certíssimo.
– Foi um verdadeiro estalo. O capitulozinho saiu num jorro. Não se trata de construir a multi-ficção. Mas se ela reflete a vida, a prosa da vida, nem por isso está dispensada de ser arte, certo?
Ped-lhe que deixasse de preâmbulos, e lesse.
– Vem você de um primeiro capítulo, venho eu de um pesadelo, vamos lá, Arno!
Leu pausadamente –
Estava de verde e debruçada no parapeito do navio, olhava o mar.
Uma ave. Era uma ave recortada no ar da tarde... Não, não me surpreenderia se de repente desferisse o voo!
De verde ela estava e o vento bulia a sua cabeleira negra, que toda esvoaçava para o alto.
Num momento, alguém cantava no convés deserto. Era ela! a esquiva daqueles dois dias a bordo, que eu notara subindo o portaló em Santos.
Fechei a revista sobre a qual esboçara o seu perfil e caminhei para ela.
O pânico movimento de fuga quando lhe disse que continuasse:
– Quer zombar de mim?
Outra pessoa, quando soube que eu era pintor.
– Ah, seu rosto! Vi tudo nos jornais. Um prêmio de viagem ao estrangeiro. A Europa, os museus, o convívio com grandes artistas...
Olhos de animal novo maravilhados.
Grácil, me fez seu confidente. Gostava de arte, desde menina. Mas o pai queria que se formasse em química. Química industrial! (sorriu). Acabara se conformando. Por fora, claro. Como deixar pra depois a Pintura, se já ia fazer dezessete anos, e esse depois seria um fim de vida?
Calou. Mas logo, com vivacidade:
– Não quis viajar de avião? ela disse me olhando francamente.
– Gosto do mar. Veja agora como na crista das pequenas ondas desfolham brancas folhas de espuma...
– Eu também. Já reparou como muda de cor? Um instante, cinza; outro, oliva...
– Sim, há muitos mares.
Outro silêncio.
Observávamos à altura de um barco-pescador um bando de pássaros em revoo.
– Gostaria de ver um albatroz, ela disse.
– Esses, são modestas gaivotas.
– Ah, se eu fosse livre como uma dessas pequenas gaivotas...
– Que faria?
– Ora, havia de ser pintora.
– Por que não?
Sentiu-se compreendida e motivada com o aplauso. Ignorou meu jeito canhestro e exaltou-se:
Inteiramente pintora. E chegaria aonde ninguém alcançou. Inventaria cores novas, inexistentes, formas novas. Toda a Arte me pertenceria!
Entreguei-lhe o desenho, ela encantou-se e feliz comentou que só tinha um defeito.
– O quê?
– Oh, a dedicatória.
Deu-me um beijo no rosto e correu a adolescente morena e angulosa que desembarcava horas depois em Recife. E nem seu nome guardei, tão distante do concreto da vida eu vivia. Na minha memória era a Verde.
Meu universo era a Pintura, fora dela tudo me parecia indiferente, inútil. Por que acabamos tão reais e cotidianos, tão pouco nós mesmos?
Interrompeu-se. A continuação estava ilegível, pois jogara aquilo no papel de um jato, deixava pra outra vez. Quisera só dar notícia. Lançara as duas figuras principais, cortava, e numa volta ao passado, exporia em estilo vivo, que cativasse e prendesse leitores como Jovita, Margarida, Seroa e eu.
De novo se interrompeu.
– Vai deitar, dorminhoco. Agi como um egoísta.
– Nada.
– Eu precisava comunicar com alguém. Você.
– Acho que dá partida a bom passo.
– É um reforço. Boa noite! Boa noite!
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Teu caminho é o romance
