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39 CERTA MADRUGADA o telefone me acorda violentamente. Pego às tontas o fone. Ouço baixinho, misterioso:

         – Meti mãos à obra...

         – Ahannnnnn?

         – Duas personas... Dossiê da Pintura, novela poética.

         –  De onde fala?

      – Alô! Alô, Nestor! Sou eu. Você boceja? Está dormindo, homem?

         Abruptamente  me senti reposto na realidade.

         – Eu não devia ter ligado, perdão.

         Ainda  mal  desperto  do  sono de um dia inteiro a lecionar, me recompus dizendo a meu primo que falasse. Quis ele desistir, insisti que não. Atendeu logo. Descobrira um novo filão que intuíra naqueles dias de serra, rasgando o roteiro primitivo, aquilo de planos só serviam para gelar a imaginação. Ia improvisar o tempo todo, certo?

         – Certíssimo.

      –  Foi  um  verdadeiro  estalo. O capitulozinho saiu num jorro. Não se trata de construir a multi-ficção. Mas se ela reflete a vida, a prosa da vida, nem por isso está dispensada de ser arte, certo?

         Ped-lhe que deixasse de preâmbulos, e lesse.

      –  Vem você de um primeiro capítulo, venho eu de um pesadelo, vamos lá, Arno!

 

            Leu pausadamente  – 

 

          Estava  de  verde   e  debruçada  no  parapeito do navio, olhava o mar.

           Uma  ave.  Era  uma  ave recortada no ar da tarde... Não, não me surpreenderia se de repente desferisse o voo!

           De verde ela estava e o vento bulia a sua cabeleira negra, que toda esvoaçava para o alto.

         Num  momento,  alguém  cantava no convés deserto. Era ela! a esquiva daqueles dois dias a bordo, que eu notara subindo o portaló em Santos.

           Fechei   a   revista  sobre  a  qual esboçara o seu perfil e caminhei para ela.

            O pânico movimento de fuga quando lhe disse que continuasse:

            – Quer zombar de mim?

            Outra pessoa, quando soube que eu era pintor.

         – Ah,  seu  rosto!  Vi tudo  nos jornais. Um prêmio de viagem ao estrangeiro. A Europa, os museus, o convívio com grandes artistas...

            Olhos de animal novo maravilhados.

            Grácil, me fez seu confidente. Gostava de arte, desde menina. Mas o pai queria que se formasse em química. Química industrial! (sorriu). Acabara se conformando. Por fora, claro. Como deixar pra depois a Pintura, se já ia  fazer dezessete anos, e esse depois seria um fim de vida?

            Calou. Mas logo, com vivacidade:

            – Não  quis  viajar  de  avião? ela disse me olhando francamente.

        – Gosto do mar. Veja agora como na crista das pequenas ondas desfolham brancas folhas de espuma...

          – Eu   também.  Já  reparou  como  muda de cor?  Um  instante, cinza; outro, oliva...

            – Sim, há muitos mares.

            Outro silêncio.

        Observávamos  à  altura  de  um barco-pescador um bando de pássaros em revoo.

            – Gostaria de ver um albatroz, ela disse.

            – Esses, são modestas gaivotas.

            – Ah, se eu fosse livre como uma dessas pequenas gaivotas...

            – Que faria?

            – Ora, havia de ser pintora.

            – Por que não?

           Sentiu-se   compreendida   e   motivada  com  o aplauso. Ignorou meu jeito canhestro e exaltou-se:

       Inteiramente  pintora.  E  chegaria  aonde ninguém alcançou. Inventaria cores novas, inexistentes, formas novas. Toda a Arte me pertenceria!

           Entreguei-lhe  o  desenho,  ela  encantou-se e  feliz comentou que só tinha um defeito.

            – O quê?

            – Oh, a dedicatória.

        Deu-me  um  beijo  no  rosto e correu a adolescente morena e angulosa que desembarcava horas depois em Recife. E nem seu nome guardei, tão distante do concreto da vida eu vivia. Na minha memória era a Verde.

           Meu universo era a Pintura, fora dela tudo me parecia indiferente, inútil. Por que acabamos tão reais e cotidianos, tão pouco nós mesmos?

 

            Interrompeu-se.  A  continuação  estava  ilegível, pois jogara aquilo no papel de um jato, deixava pra outra vez. Quisera só dar notícia. Lançara as duas figuras principais, cortava, e numa volta ao passado, exporia em estilo vivo, que cativasse e prendesse leitores como Jovita, Margarida, Seroa e eu.

De novo se interrompeu.

– Vai deitar, dorminhoco. Agi como um egoísta.

– Nada.

– Eu precisava comunicar com alguém. Você.

– Acho que dá partida a bom passo.

– É um reforço. Boa noite! Boa noite!

 

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Teu caminho é o romance

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