Xavier Placer
37 AMIGOS, SABENDO-O NA TERRA, compareciam, ficavam em conversas sem fim. Quando apareciam o Luís e o Petraglia, Jovita não deixava de associar-se ao grupo. Ouvia-se o alegre convívio, as falas e risadas na varanda.
Eis que chega o velho dentista, Luís Caçador! Não era alto, era comprido, e adquirira de sua paixão, a caça, o andar curvado, relanceando o olhar sagaz em torno, falando baixo.
Arno: Luíz, como vão as pacas? O D'Ângelis jura que você compra as pacas.
Plantado na desimportância que dava a tudo e a todos fora do seu hobby, ele nem considerava.
Depois, telegraficamente:
– A venatória não é pra qualquer. É um culto.
– Um culto? Então Diana caçadora o tem favorecido.
– Demais.
– Mas o culto não se conflita em você com o sentimento, Luís?
– Qual! Animais nascem para isso. São autômatos.
Cala, pra fazer-se de rogado. Então, recita:
– Parti na fresca da manhã. Tinha muito chão pela frente. Sei que o andar não cansava, os olhos espreitavam rendendo conta das coisas. Nenhum percalço. Nem que houvesse, eu sou ajudado, meus perdigueiros e minha espingarda em forma. Como digo, no final, sol a pino, aquela lagoa na Curva do Vento. Já vi muito cenário, até com perigo de caçador virar caçado, igual nunca. Era aquele bonito espelho d'água, toalha estendida no Vale, defendida pela distância. E por mais de sete bem contados boabás com a cortina dos ripsales...
– Um santuário.
– Um santuário da Natureza. Espaço frequentado só da boa peça. Bem, por Santo Humberto! pelo patrono do ramo, a caça miúda fica na prateleira. Falo da gorda. No anfiteatro forrado de relva, que avisto?
A Garça Azul – o Faisão Emplumado – o Falcão Peregrino – o Sabiá Poliglota – a Corça Platinada – o Flamingo Rosado – a Ave do Paraíso...
– E Luís Caçador ali.
– Eu, que descobria esse recanto do mundo, aquela apoteose vitralesca, mais a minha matilha atilada. Deixei cair embornal e espingarda, – era grande demais!
Arno: Palmas! Palmas! Bravos, Luís Caçador! rouxinol barroco.
Ocasionalmente surgia o Petraglia. Morrera-lhe a mulher, casara com a cunhada, era o mesmo homem divertindo o mundo e divertindo-se. Explorava agora eventos, festividades e excursões.
Uziel: O italiano chegou, Dr. Arno.
– Já o ouvi! Manda subir, e não esquece o vinho.
Jovita saudava-o:
– Oh, sr. Petraglia, muita saudade da bela Itália? Consta que organizou lá uma grande empresa...
– Piccola! Picolla, signora! e baixa a cabeça.
Joga o corpo de grandalhão na poltrona de vime, serve-se sem cerimônia da garrafa sobre a mesa. Copo na mão, discorre sobre os vinhos da pátria. Depois despejava a torrente de sua eloquência reiterando-se siciliano, exaltando a ilha natal, dove luce l'arcobaleno.
Alguém: Quando volta pra terrinha, "seu" Petraglia?
– Brasile! Brasile! Aqui fico. Io sono um meteco aculturado, non? E a amada Santa Rita é a minha base. Voltar para Europa! (pausa). Nosso vecchio continente de brasões e ruínas, condes e guerras... Dio buono! volte quem quiser, non? Io sono Giacomo Petraglia (infla o peito). Achei di buon'ora o País dos Assombros. l'altra Isola dos meus sonhos.
Arrecada os dois últimos pãezinhos de queijo do prato.
– Questa delícia non se deixa pra trás...
Mas aí, a pedido unânime, em baixos e agudos de barítono atroa os ares de Santa Rita. De pé, Petraglia canta.
Visita nada espetacular mas quase certa, a do Cirilo, antigo colega mais velho no Ginásio. Sua voz rala não condiz com a convicção forte de anarquista. Na cabeça dele, Arno é um seu discípulo da ideologia desde aquele tempo. Troça dele mesmo, reconhece-se neurótico. Observam-lhe alguns íntimos: Por que você não procura um psicanalista? Troça de si: Porque se a psicanálise me curar, viro burro.
Mora só no sítio Casa da Mata, adjacências da cidade e vem de bicicleta. De que vive? Vários cursos pela metade, pois inteligência não lhe falta, não se formou em nada. A Universidade burguesa é uma choldra, meu caro! e depois ele, homem social sim, mas não animal de rebanho. Cirilo faz somente o que gosta, e de quando em quando some de Santa Rita.
Conta: numa noite de má sorte, de volta pra casa, encontrou-a ardendo. Enquanto vizinhos acudiam com baldes d'água e paus, esperava ele no que ia dar tudo aquilo...
– Omisso.
– Omissíssimo. As labaredas, infernizadas, me olhavam raivosas.
Perdera quase todos os livros, calhamaços, e o caderninho de endereços. Oblíquo:
– O que mais me doeu, companheiro, foi a queima do belo retrato do meu barbudo Bakunine. Tu não lês O Catecismo Revolucionário que te dei, mas está tudo ali.
Arno, para divertir-se:
– Dei-o de presente ao Menescal.
Cirilo não ri, agita a mão de dedos amarelados pelo cigarro:
– Esquece esse desastrado.
Verbera mais uma vez e sempre a democracia e seus direitos de fachada, a alienação geral e lamenta a falta de oportunidade de participar de comícios, passeatas, tomar um banho saudável de multidão.
– O Anarquismo salvará o mundo!
Afora o evangelho niilista do amigo, que ele tem o tato de não contradizer para não exaltá-lo – Humanidade num Futuro maior, socializada sem Estado nem Governo – Cirilo é um desafiador de estórias que para satisfação dele, Arno grava.
Munira-se ultimamente de gravador – presente de Seroa – e de suas horas soltas nos remetia em cassete uns "espetáculos ao vivo". Flagrantes, tiros, trelas das gentes das Alterosas, suas manhas e picardias, que Margarida adorava. Sugeria a ele que publicasse. Uma seleção.
– O quê? Livro? Somemos razões, não passam de acanhada matéria vizinha do parvinismo. Tenho autocrítica.
Se insistia:
– Em homenagem a vocês, quem sabe? Claro, eu sonho mais alto.
Pag
39/70
A mulher, a filha & os amigos
