Xavier Placer
34 NO TEMPO DE ESTUDANTE de arquitetura, Arno criticara o exibicionismo novo-rico do casarão colonial arremedo de chalé romântico, era todo do concreto, aço e vidro. Apaixonara-se pela arte e tecnologia fundidas num estilo único inventado pelo alemão Gropius – a Bauhaus. Ali estava a casa do nosso tempo: arrojo, sensibilidade plástica, funcionalidade.
Aconteceu que no último ano sua turma foi recebida por Le Corbusier. O Mestre estava de passagem pelo Rio, o professor da Faculdade conseguira aquele encontro. Encontro informal. "A Bauhaus é o paraíso da mediocridade", afirmara o suíço. Aquilo abalou os alicerces do jovem aprendiz.
Precisava conhecer Niemeyer, ouvir a opinião dele sobre aquela rasgada afirmação. Não sossegou enquanto um amigo comum não o levou ao estúdio do Mestre brasileiro.
Má sorte. Ao chegarem lá, uma tarde, estava de saída, desceram com ele. No elevador Niemeyer, pousando o braço no ombro do visitante, pediu-lhe que desculpasse, que aparecesse outro dia, disse amavelmente.
Apareceu, tornou-se amigo e admirador do brasileiro.
Arno arquiteto riscou a planta de sua casa em Teresópolis no Retiro do Lago, e ele próprio dirigiu o trabalho de montagem. Era em madeira.
Simples, a construção pousava quase em asa-delta no terreno. A porta abria no ângulo com dois janelôes em guilhotina a cada lateral. A esquadria, pintada de branco como a balaustrada, contrastava com o castanho envernizado do pau-ferro.
Para espanto de todos, fez as divisórias móveis, o que possibilitava a distribuição renovável do espaço. Jovita achava isto uma extravagância, e ano depois os módulos, substituídos por paredes fixas, subiam até o teto como a dona queria. Lá embaixo, o lago ovalado, a dianteira da casa repetia-se no espelho d'água. à distância as encostas dos morros verdejavam em variados matizes, o Sol destacava uma, duas, muitas pedras negras. Mas o melhor da paisagem eram as umbaúbas luzindo as folhas de prata ao luar.
Sempre às voltas com um ou outro projeto. De madeira, de alvenaria, de materiais conjugados, em pilotis, sobre o solo, com lareira ou sem lareira. Eram gentilezas aos amigos e aos amigos dos amigos, empenhando-se em acompanhar a obra. Inda na festa da cumieira o arquiteto das horas vagas não faltava.
Clarinda, a esposa do Brigadeiro Antunes, assim que viu a casa da amiga Jovita, encantou-se. Quis uma igual e tinha que ser no Retiro do Lago. O marido andava desentendendo-se com o condomínio da Granja Curumã, então comprou dois lotes pegados, alguns metros abaixo. O arquiteto imaginou um risco diferente, submeteu-o ao casal, agradou. Durante a construção ela impôs umas alterações, foi atendida em parte, e tudo saiu a contento dos proprietários e do arquiteto.
Porém logo Arno devia desgostar-se. A nova vizinha, a voluntariosa mulher do amigo, começou a transformar os espaços, calculados e funcionais, em ambiente compósito.
Comprava tudo o que via.
Fora, no gramado, logo o solecismo de um índio em vergalhão te apontava a flecha. E vinha a graciosa ronda da Branca de Neve e seus anões. Vasos grandes e pequenos atulhavam, samambaias-choronas em ganchos borrifavam dos xaxins os rostos dos passantes.
Dentro, móveis neoclássicos e tapetes em cores vibrantes. Decapês (obra da sogra), modelos artesanais de aeronaves (hobby do marido), um esguio bergantim (tapeçaria feita pela dona da casa), paisagens em moldura ouro-velho, porta-retrato colorido de casamento, fotos do Brigadeiro pilotando, acima da cama redonda bênção papal verdadeira em falso pergaminho.
O esmigalhamento do projeto injuriava a alma do arquiteto, que se esforçava quanto podia para não deixar transparecer o desagrado.
Jovita (era mulher) por detrás divertia-nos:
– Marido, quero um brechó.
O Brigadeiro não contrariava em coisa alguma a esposa, homem aliás que pagava pra não se incomodar:
– Arnóbio, eu não te nego razão. Mas casa, conforto, é assunto de mulher, certo? Que faça lá o que entende e gosta. E você não se aborreça com o pequeno museu de província...
Excelente homem este Brigadeiro Antunes.
Aparecia de quando em quando no Retiro do Lago a visitar os velhos pais que moravam numa casa amarela no condomínio. A aproximação de Jovita mais a mulher do Brigadeiro acabou em amizade entre os dois casais. Convidando-os Arno a uma ida a Santa Rita, lá se foram num fim-de-semana à Fazenda da Arca.
Imponente pessoa física, não teria feito má figura como diplomata. Embaixador Umberto Leal Antunes! gracejou Arno uma vez em que haviam ficado a sós de conversa na varanda. Antunes, militar reservado, abriu-se em confidências.
Fora exato o primeiro desgosto que dera aos pais que o queriam continuando a tradição familiar começada no bisavô, interrompida no avô e retomada com o pai, a carreira diplomática. Mas a real vocação dele, desde os tempos de escoteiro a comandar do chão aviõezinhos motorizados, fora a aviação. O outro desgosto e grande tinha sido o noivado desfeito com uma prima. Casara quarentão. Sim, a esposa era de origem modesta, cedo tivera que lutar pela vida mas reparasse que, no fundo, boa criatura. Gostara dela à primeira vista, verdade que quinze anos mais moça... Há muito, graças a Deus, ela conquistara a família, que lhe descobrira as qualidades. Meu pai hoje entende-se às maravilhas com Clarinda...
– Compreendo. Deve ser como meu velho com Jovita.
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A mulher, a filha & os amigos
