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33 FOI POR ESSE TEMPO que passou a fazer conferências. Levo um pouco de responsabilidade nisso. Chamei-o para uma fala informal numa hora de aula na Universidade. Meus alunos e alunas ficaram entusiasmados com o Dr. Arnóbio, quiseram insistentemente que o trouxesse outra vez. Atendi.

       Divertia-se seu tanto e a nós. Aquele telefonema anônimo se aceitava elaborar uma conferenciazinha, não importando absolutamente o preço; o admirador querendo a opinião dele sobre isto ou aquilo;  o  bilhete  perfumado  elogiando – uma fonoaudióloga? –  sua voz; aquele que lhe escreveu sugerindo (não dizia a razão) que devia assinar-se Arnóbio F. de Melo...

 

          Tinha o seu método. Deixava na sombra o irrelevante, o discurso do óbvio e a retórica.

            Em hipótese alguma improvisava.

            Pesquisava,   pondo   abaixo  coleções  de sua biblioteca, ia à Nacional à cata de periódicos. Seu orgulho não consentia ser apanhado numa desinformação, equívoco ou afirmação aleatória.

            Não redigia.

      Roteirizava-as geralmente em itens e  desenvolvia as rubricas. Realizou muitas, um romaneio de temas: arquitetura, cultura e desenvolvimento, mito e poesia, estética e obra, música popular, pintura, etc.

           Dispensando o copo d'água e as citações, punha a maior espontaneidade. Até o último da fila não só escutava como sentia-se compelido a ouvir. Não decorria mais de cinquenta minutos, o restante do tempo reservado ao livre debate. Estes, quanto mais acesos mais o inflamavam.

           Incidentes? Só dois. Numa das conferências –  O Homem e as Convenções –   decidiu virar a luva pelo avesso. Começar, muito a propósito, com gesto de impacto. Deixou passar uns minutos da hora para criar expectativa e, obrigando a assistência a virar as cadeiras, entrou pela porta dos fundos da sala postando-se no pequeno estrado ali. Espanto, murmúrios, mas logo discorrendo com humor, conquistou o grupo.

 

          Não fazia por triunfar de ninguém. Contudo não deixava de revidar, de dar a sua nota irônica quando necessário.

            Havia um assíduo com a mulher, chovesse ou fizesse sol, que não perdia oportunidade de intervenções. Chato como um lugar-comum, sentava na primeira fila claramente marcando presença e interrompendo. Articulava as sílabas de cada palavra como quem chupa bala de jujuba. Quando porfiava demais, a companheira o cutucava discreta.

           Sua intervenção certa vez desfiou um dicionário de rimas:

          – Estranho que tão informado expositor teve tão poucos a nos dizer sobre bibliotecas

                       cinematecas

                                             discotecas

                                                              fototecas

     iconotecas...

           Arno: e ludotecas. O senhor está coberto de razão.

           Para riso geral:

          – Noutra pragmática, comprometo-me, cuidarei de prática menos homeopática, mais sistemática e catedrática...

           Costumávamos  perseguir  Arno  com o fantasma patético do assíduo. Sim, morreu entre uma conferência e outra.

       Parece  que a  cor  da  pele algo queimada ou porque exercera crítica ranzinza de rodapé, o candidato à Academia era toda-vez derrotado. Afinal teve o voto único a-mais como tantos. Seu Estado pagou o fardão, o presidente instou que viesse ao chá das quintas, marcasse o dia da posse.

    Obstinado antes de academizar, adiava agora o ato indefinidamente. Oculta razão: o demônio familiar sussurrava ao novo imortal que ao fazê-lo... Mas pressionado por amigos, empurrado pela mulher, decidiu-se.

      Em traje verde-ouro, subia à tribuna o empossando na poltrona azul.

      O antecessor fora filósofo sem o saber, com seu ideário apaixonado, senhora e senhores, pontos de vistas personalíssimos (pausa). Que nenhum patrício desdenhasse do cultivo preconizado por aquele humanista: a leitura diuturna, a reflexão meditativa, a consciente e subconsciente criatividade. Esta, a matriz da originalidade...

         Jogou para cima num voo largo as excelências da formação humanística versus tecnológica. Nova pausa, passou ao elogio da persona do ilustre. Não eram as humanas personalidades como certas obras? Esquecemos esta na estante ao lado da outra, lida e relida; vivemos uma existência inteira junto ao amigo até o dia afinal da descoberta (pausa). Senhôras e senhores, cumpria lhe dizer tudo e o fazia jubiloso: seu antecessor revelara-se um dia poeta! Não um bissexto qualquer, não. Um vero poeta.

         Declamava os admirados versos:

 

Em que clima do mundo?

Onde? Quando Melpômene?

Descobre-nos, ó Musa,

Em que clima do mundo?

 

e eis o orador estaca de súbito.

      Imaginou a educada assistência tratar-se de nova pausa. Educadamente esperaram no conforto das estofadas cadeiras.

        Na noite de flores e luminárias, noite de triunfo, as laudas do orador como bando de borboletas precipitavam-se sobre as cabeças. – Morreu em pé.

        Acadêmicos meticulosos puseram em xeque a validade da recepção. Para alegria da viúva, venceu a ala liberal: tendo o recém-eleito proferido mais de dois terços da peça, estava – de fato e de direito – empossado. Sepultaram-no entre os pares no mausoléu da ABL.

 

 

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A mulher, a filha & os amigos

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