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32 NA BIBLIOTECA, via-se num cartão à frente dos livros:

 

 

 

 

 

 

 

         

 

         Fraseado. Arno, ele-próprio, que escancarava os olhos bem para a vida, lia, lia, lia. Submeteram-lhe o famoso questionário: os 10 melhores livros a levar para a ilha. Pôs-se a contá-los, eram mais de 100...

        Divertia-se falando sério dos acidentes de leitor-leitura – a brochura em que estamos interessados cujas páginas se desfolham pelo dorso e abandonamos de mau humor para ler depois de encadernada; o olho a distrair-se subliminarmente com o contínuo branco, acaso da composição tipográfica no eixo vertical do texto; a formiguinha surgida ninguém sabe de que açucares e que, esperta atravessa em diagonal; o cartão que não esperávamos e cai a reiterar votos natalinos fora do tempo; a própria contingência do senhor corpo; aquela ardência nos olhos, sobretudo ah! o telefone que nos estremece como se chamasse para algo urgente-urgentíssimo – receber a condecoração ou ouvir a voz da mulher amada e – droga! – é ligação errada.

 

         Tinha a paixão de conhecer.

        Não como diletante, detinha-se em cada assunto com igual interesse, matéria curiosa ou árida que fosse. Sempre crítico e desconfiado.

        A Filosofia o atraiu desde cedo. Porém como eu o criticava ao vê-lo muito às voltas com tratados, inclusive de gurus orientais, e os amigos a dizer-lhe que ainda ia dar em doido, acabou concordando, patético:

     – Vocês  estão  certos.  Sistemas  são  autobiografias intelectuais com seus biombos de máscaras e ambiguidades. Preciso retornar dessas errâncias por praias absolutas e desembarcar no mundo.

        Até  aperfeiçoou  o método de leitura de obras: apreender de pronto a tese do autor e muito texto ficava lido por metade, pois o resto (afirmava), era enchimento.

        E memórias, diários íntimos, cartas, biografias, produções tais em que, informal, funciona a marionete humana foram a sua curiosidade maior a seguir, por bastante tempo.

        Não faltavam resistências. Teatro. Sentia ojeriza pelo pingue-pongue dos diálogos, abria uma só exceção: Shakespeare. Também lia com prazer o Fausto.

            Para o insatisfeito Arnóbio o mundo fora criado em 1500 D.C.

         Jovem, alimentava seu fraco pelos clássicos. Com o tempo, o entusiasmo esfriou. Que tinha a ver, meus amigos, com aqueles temas e clima?

            Da literatura da Idade Média leu um autor que ninguém lê, mas isto devido ao nome e apelido: Arnóbio, o Moço.

             Eu: E que tal o seu homônimo?

        – Um  escritorzinho  de  baixa  latinidade cristã. Consolou num escrito certa dama aristocrática infeliz no casamento. O que mostra que o problema não é de hoje...

       Seroa (que não perdia oportunidade): Repara só, Nestor, nosso Arnóbio afinal não é tão difícil de contentar.

          – Vocês não me conhecem...

          Meu primo era todo da ficção russa, francesa e inglesa.

        Porém  voraz  e  impaciente  para se deter muito num só autor. Algum tempo foi decidido proustiano. Quanto a Joyce, que Seroa punha nas nuvens, contava que aventurando-se com boa vontade no riocorrente das 800 páginas do Ulysses, exilado no fundo da condução., dormitara. Qual fora a epifania ao despertar? Tinham-lhe surrupiado o chapéu e o tijolaço.

        Seroa: Aceitemos. O irlandês mira de viés, mas acerta na mosca.

        Arno:  Bem,  prometo  voltar  um dia ao 16 de junho de 1904.

          – E será na minha primeira edição.

          – Olha que corre o perigo de não ser devolvida.

          – Fica em boas mãos, meu caro.

         Imenso ledor de poesia, lamentava ter de se aproximar da poesia oriental através de traduções ou, como agora se dizia: transluciferações. E da Crítica repetia desdenhosamente que "quando um crítico condena, o escritor (criador) está certo".

 

          Tinha particular facilidade para idiomas.

          Dominava vários e não apenas instrumentalmente. Lembro da ingênua satisfação do adolescente quando percebeu na cabeça dele a compreensão do texto fluindo na língua estrangeira.

          –  Muita palavra na cuca não estraga a criatividade, Arno?

          – Nunca pensei nisso. Acredito que estimula, Nestor.

       Vinha  Seroa:  Claro  que  estraga, gentes. E pra poeta quanto maior burrice, melhor.

        Arno: Que despautério, céus! como diz o Sadhoc. E logo quem fala, o sr. Eliakim Seroa.

          – Bem, eu sou um estragado, culpa do meu velho. Vivia a repetir em casa, o propósito ou não, que quem não sabe pelo menos cinco idiomas além do próprio, era débil mental.

          A tudo acabou Arno preferindo os seus queridos do verso e prosa.

       – São hoje os verdadeiros filósofos. Sem esses intuitivos jamais saberíamos do animal homem: seus abismos, sua loucura e o resto.

          Agradar a primo Arno?

       Oferecer-lhe  um  livro.  Festejava: como é bom ganhar livro, professor Nestor! Se a gente já tem, passa-o adiante, alegrando a outro. Toda véspera de Natal eu lhe oferecia um Quijote. Possuía-o em variadíssimas edições e línguas, aquisição dele ou presentes de amigos. Também tentava reunir a coleção completa das primeiras edições de nosso Machado. Nas minhas buquinagens, eu ficava atento e quando descobria um novo exemplar Garnier comprava-o e guardava-o para a data.

          – Desta vez você me passou na frente... Mas tua gentileza não tem tamanho, Nestor! e me envolvia num abração.

 

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A mulher, a filha & os amigos

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