Xavier Placer
31 A MULHER, A FILHA & OS AMIGOS. A advocacia por ofício. Leituras. Descobertas, interesse criativo. Entranhadamente, devoção à terra natal. Este, o universo daquele amante da vida, Arnóbio Franco de Melo, do artelho à cabeça uma natureza intelectual.
Realmente um gosto sua biblioteca no duplex do Leblon.
Arno sentia prazer físico do livro, a sensualidade de segurar nas mãos um objeto onde se encerrava conhecimento e/ou beleza. Adquirida a obra, que preferia não-encadernada, mandava-a logo para a oficina preparando sistematicamente o "papagaio" com os dizeres a dourar no dorso. E, nossa!, as turras de Bibliófilo x Encadernador. Chegava ao ponto de desfazer-se do exemplar mal trabalhado comprando outro pra começar tudo de novo.
Tive algum tempo de levar eu as obras, o Encadernador não queria tratar com ele. Depois vieram as pazes. E foi quando, forte jogador a beira da falência, o Encadernador correu atrás de socorro. Arno salvou-o como advogado e até lhe emprestou dinheiro.
Gostava dos espaços vazios e das superfícies despojadas. Pelas quatro paredes, além do retrato de Arnóbio por Pancetti – camisa solferino entreaberta destacando sob fundo cinza – viam-se uma "cabeça" de Jovita aos quinze anos por Dacosta, uma paisagem de Djanira.
O zelo que punha na conservação da biblioteca! Nada devia ser tocado. Ficava aborrecido quando a empregada nova, esquecida da recomendação, embaralhava uns volumes. A dedetizadora vinha expurgá-los periodicamente, mais vezes do que desejava Jovita, que não tolerava aquele cheiro, mas havia nisso uns ciúmes inconfessados pelo amor do marido aos livros.
Sobre a mesa sem gavetas a resma de papel. Ao lado da máquina de escrever, aquele objeto estético, ferro retorcido sustentando verticalmente o seixo – parlapedra – de Luiz Papi.
Gostava de minerais, cuja rigidez e cintilância o transportavam ao imemorial. À frente da livrarada, cristais de rocha em drusas grandes, pequenas, transparentes, coloridas. Diante de uma daquelas peças, ele era inquieto, parava. Pegava um fragmento de quartzo que aprisionava água – e o mudo documento de uma idade-sem-o-homem, nas origens, deixava-o pensativo. Por que o depois? Por que tudo não estacionara ali?
Como viajara, possuía curiosidades de artesanato que reunia numa prateleira de vidro. Se o visitante se agradava de uma qualquer, ao despedir era certo recebê-la embrulhada. Afirmava não conhecer o sentimento de posse.
Não se negava a emprestar livros. Se o interessado porém retardava a entrega, jeitosamente inqueria sobre a leitura. E ele, que tinha n'alma uns pecadilhos de furtos confessados, não deixava de discretamente vigiar o visitante...
Estantes de mogno abertas, dispostas contra a parede, exibiam dorsos gravados de uns três mil títulos, tudo classificado e catalogado. Trabalhou ali um ano jovem Bibliotecária.
A zelosa profissional! Logo nas primeiras semanas, ao chegar Arno em casa, pediu-lhe Jovita, pelo amor ao bom-gosto, retirasse aquele pequeno quadro de dourada moldura da biblioteca.
– Qualquer hora encapa seus dicionários de plástico.
Ele correu a verificar e deparou-se com isto –
E ia em frente a enfiada de nãos do decálogo envidraçado.
Dia seguinte, a Bibliotecária:
– Gostou da surpresa, Dr. Arnóbio? Presente meu.
Casada com o secretário de uma sociedade de aficionados em ex-libris, vivia a encarecer a importância dessa marca de propriedade colada no reverso da capa ou no anverso da contracapa dos volumes. A moça sentia-se, com os dias, realmente frustrada pela ausência daquela etiqueta no acervo arnobiano.
O dono (após várias investidas): Ex-libris. É kitsch.
Bibliotecária: Que qu'é isso?
– Simplificando, minha amiga, cafona.
– Pelo contrário, muito chique. Dá a maior classe à publicação.
– Você acha mesmo?
Quem não acha? Personaliza, como diz meu marido. Inda mais com uma legenda em latim pra diferenciar de logotipo, Dr. Arnóbio. Quer que traga o Paupério pra bater um papo com o senhor?
Por delicadeza prometeu pensar no assunto.
Notara que no Sistema Decimal de classificação Deus aparecia sob um número e isto o surpreendeu como algo ridículo, engraçado.
– Você já atentou para o número de Deus na Tabela? perguntou-lhe.
– 231. Deus é 231 no Dewey. Que que tem?
O Bibliófilo caiu em si e parou por aí.
A seguir, treinado em catalogação e classificação, incorporava ele mesmo as novas aquisições à sua escolhida biblioteca.
Ouvi uma vez o sensato D'Aquino observar que não entendia pra que gastar tempo em catálogo. Era ir à estante, se as obras estivessem arrumadas por assunto, apanhar.
Arno: Também acho.
Desarmado, o colega ficou a olhá-lo.
– Ora, ora, D'Aquino, e o prazer de organizar?
D'Aquino: Eis a última singularidade arnobiana. Querem saber da penúltima? Semana passada devolveu lá no escritório um processo. Com este versinho:
Dr. Santiago apostila:
Volta Arno:
Foi o assunto da semana...
Gostava o amigo dos livros de se demorar a conversar entre eles. Tinha na ampla biblioteca, que ocupava parte superior do duplex, poltronas confortáveis. O barzinho ficava camuflado. Não queriam uísque? Mandava vir cafezinho, que devia ser forte e fumegando, para acender devagar o cachimbo com Half and Half.
Pegasse alguém um volume e o recolocasse, ele levantava-se e ia ajeitá-lo, batendo leve com os dedos qual se faz nas costas de um filho.
Certas ocasiões ele me irritava:
– Arno, você é um verdadeiro maníaco.
– O Encadernador tem um adjetivo melhor. O diabo do homem me xingou outro dia de raquítico.
– Raquitíssimo, meu caro. Tudo o que é seu dá a impressão de um rigor, uma meticulosidade...
– E há quem me tome por um dispersivo, um desordenado. Eu, que para ser alguma coisa, preciso de tudo ao meu redor na mais perfeita ordem, e sem isso nada sou.

SÚPLICA DO LIVRO
Não me manuseies de mãos sujas.
Não escreva em minhas páginas
Não unhe nem dobre minhas margens.
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A mulher, a filha & os amigos
