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30   NOS DOIS ANOS que o casal residiu lá, fomos visitá-lo uma vez. Acompanhou-nos Saloméa.

      Encontramos  um  Arno  melancólico. Continuava no escritório de Arézio Santiago, onde se entendia perfeitamente com os colegas. O trabalho não era muito. Não procurava ninguém. O tempo lhe sobrava mais do que nunca para pensar na volta para o Rio. Sentia-se impaciente.

        – Salo,  e  o  querido Kim?, que mal responde minhas cartas.

           – Kim. Ah, o meu ilustre irmão! De-novo aeromoça, Arno. Parece que o marido voltou pra tal Mabel. E agora quando não está viajando, dedica-se a ler e beber. Outro dia, ao chegar do expediente no Banco, deparei com o Sr. Eleakim Seroa, a garrafa de uísque vazia, e ele emborcado no carpete verde da sala...

           – Como um herbívoro.

           – Exato. Como um herbívoro.

          Ninguém  riu.  Todos conheciam a antiga e crônica paixão de Seroa.

         Eu:  Sabem  de  uma coisa? No fundo, os errados somos nós, querendo um Seroa bem-comportado, um bom filisteu.

           Saloméa: Falemos de coisas alegres, gente.

          Arno (voltando-se pra minha mulher): Sabe, Margarida, o que mais me falta aqui?

           – Já sei. As boas piadas cariocas.

           – Vocês vão achar um exagero.

           – Diga.

           – O mar. O mar.

         Jovita  aborrecia-se  quando ele falava em fixarem-se no Rio. Desejava que a criança nascesse em São Paulo. Claro, devia atender. Mas tinha esperança de que depois do nascimento ela acabaria concordando.

        A mulher que acabava de entrar na sala com a bata de grávida, apanhou no ar a última frase. Depois dos cumprimentos sentou-se ao lado do marido pousando a cabeça em seu ombro.

            – Está bem, está bem. Iremos para o Rio, querido.

            Arno exultou.

            – Vocês todos ouviram! Guardem o que Jovita promete.

         Eu:  Arno,  vejo-o enfim um homem de bem, casado e feliz.

            – Jovita é boa! e beijou-a.

       A convite dela logo as mulheres foram ver o quarto e enxoval do futuro bebê.

 

         Referi a Arno a surpresa que tivera pouco antes onde no Quinto Congresso de Ciências Sociais encontrara o Cândido Jucá.

           – O Cândido Jucá Moreira da Rocha!

       – Em  pessoa.  Conversamos  longamente. Não é mais aquele caboclo amargo. Lembrou-se de você com a maior simpatia. Fora para Porto Alegre, fizera doutorado na Sorbonne, e estava vice-reitor na Universidade do Vale dos Sinos.

            Como é bom saber dessas vitórias...

            Eu,  culpando-me  da  longa ausência, quis saber notícias de Santa Rita.

       – Somos  dois  ingratos  com  a  província, Nestor. Esquecemos que um dia abrimos caminho entre o verde de capim colonião, que respiramos ozônio de curral... Telefono, Letícia me telefona. Ah, sim, soube há tempos do professor João Manoel, aqui na Paulicéia, por um parente dele.

           – Lembra-se  dele  repetindo  emocionado na despedida que ninguém esquece, que ele pessoalmente jamais esqueceria a aldeia natal?

            – Esqueceu. Disse-me o parente que brilhou um tanto na UNI-Camp. Mas depois na Universidade de São Paulo e a morte da mãe, apagou-se.

        – A  mãe  era  uma viúva dominadora... Falemos do presente, o meu primo, que faz de digno na grande metrópole?

            – Você me conhece, Nestor, não fico a toa. Um editor me pediu a tradução de uma "condensação" de Tocqueville, relutei, acabei aceitando. O homem não me largava. Vindo ao escritório e reparando no meu velho caderno de termos, expressões e frases latinas com as respectivas traduções, não sossegou enquanto não me arrancou o consentimento para uma edição, obra no entender dele utilíssima para advogados e até magistrados. Lançou-a em menos de dois meses, um vade-mécum. Está vendo que usei pseudônimo.

            – Assim? Qual?

            – Dr. Aulo Gélio.

            – O telefone tocou.

           – Vi-o muito delicado a tentar dialogar com a sogra, Dona Mariana. Olhava para mim, abanando a cabeça.

         Entendi tratar-se de questão na Justiça do Trabalho, o motorista que ela despedira. O genro orientava-a para que desse solução amigável ao caso, ela ofendidíssima com o empregado, discordava, insistia em ficar dentro dos estritos direitos de empregadora.

           Prolongou-se, e eu ia lembrando uma conversa antiga com a futura sogra. Meio brincando, meio a sério ousara perguntar à senhora o que pensava do futuro genro. Ela: –  Minha filha, como você conhece, pessoa normalíssima, jura que o noivo não é doido. Eu – E a senhora, D. Mariana? Secamente: – Eu, Professor Nestor? Que Deus me perdoe! eu alimento cá as minhas dúvidas.

           Desligou.

        – Dona Mariana,  que criatura! Voluntariosa, tem que se fazer só o que ela quer. Hoje o velho Rossi está aí um vitorioso, magnata no setor imobiliário. Mas no início do casamento o dinheiro era da mulher. À altura dos cinquenta, descobriu que o marido e sua melhor amiga...

           – Entendiam-se à maravilha.

           – Isso. Veio a tempestade e a inferneira. Jovita escapulia-se para o Rio. O Rossi é um vivedor embalado pelo uísque e os bons negócios mais os dois filhos, uns engenheiros competentes. Aquilo foi nada para ele. Ela, amargurou-se. Minha sogra é uma pessoa tensa, as obras de caridade são divertimento e terapia pela metade. Um pouco ama o genro, outro parece me odiar. Com os empregados, difícil. Toma as negligências dos que a servem como ofensas. Começa entusiasmando-se, o tempo passa, enjoa deles. Agora anda às turras com o motorista, na verdade um boa vida.

 

     Vimos meu primo exultante foi quando nasceu a filha. Telegramas de toda a parte. Notas sociais sobre o feliz acontecimento.

         Era a cara dos Rossi. Arno achou-a parecida com Ana Lídia e quis esse nome para a menina. Jovita pensara no de Dona Mariana. Conciliatoriamente acabou Ana Mariana. Depois do batizado, o casal retornou ao Rio. A menina era paulistana, como desejara a mãe e todos os Rossi.

         Os dias retomaram o seu curso.

 

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Longe de tudo que diminui

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