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27 LONGE DE TUDO QUE DIMINUI, vivendo e deixando-se viver. Observador irônico mas caçador de vária sorte, temeroso da rotina: pura ânsia do transitório a agarrar. Jamais casaria! Amor cartorial? Conjugo vobis até que a morte vos separe? Não, amigos, não era com ele. E...

    Aconteceu o contrário.  Os Rossi de São Paulo não consideravam aquele Melo, jovem advogado filho de fazendeiro, bastante credenciado para casar com a caçula de empresário, mestrado em Administração na América e falando inglês fluentemente. Além disso, Arno sem se dar conta (algumas vezes dando) contundia aquelas couraças blindadas com paradoxos e relampejantes sarcasmos.

         Jovita passava as férias na casa da tia, mãe do tenente, no Rio. Protásio casara recentemente com Irema, nutróloga, de consultório na Praia Vermelha e o casal morava com a mãe viúva. Arno a conhecera à beira da piscina do clube Botafogo e logo se perderam de vista. Tornaram a se aproximar depois, num encontro no Aeroporto de Congonhas.

       De  repente  Arno  recebeu um telefonema. Era ela. Ligava a pretexto de certa obra ilustrada sobre a bela rainha egípcia Nefertite, esposa do faraó Tutankhmon, difícil de encontrar. Cansara de correr livrarias!

         – Por acaso, tenho.

         – Ah, tem? Eu empresto a você.

         Arno não entendeu:

         Jovita riu gostosamente do outro lado da linha:

      – Perdão! Estou falando que nem paulista. Me corrijo já: tomo-a emprestado, Arno.

        Ele quis saber de que jeito podia fazer chegar a ela o livro. Se houvesse um portador para São Paulo...

         Riu de novo.

       – Mas  eu  estou no Rio! Telefono daqui da casa de minha tia. Eu mando buscar. Não, não, espera...

    Arno  adivinhou-a,  adiantou-se sugerindo que podiam encontrar-se em qualquer parte.

        Jovita: Adoro o Rainbow, Aqui mesmo no Leme, do lado do mar.

      Ficou  ajustado  o encontro  para  a tarde seguinte no barzinho que ela adorava.

      Arno  viu  a  amiga chegar num pulôver preto que lhe modelava o busto e contrastava com a alva epiderme. Pela primeira vez notou que Jovita, baixinha de cabelos louros presos pra trás, era graciosa no salto alto.

         Galante, prendeu uma orquídea junto ao seu rosto, que sorria. Entre torta de maçã e sorvete começou naquela hora um vago namoro nutrido de livros pra cá pra lá, encontros, conversas, longas confidências.

         – Você me parece a menos paulista das paulistas...

        – Impressão.  Quero  um  bem enorme à minha terra, sou uma paulistana da gema. Mas também o Rio me conquistou. Aqui, sonho com a garoa de São Paulo, lá com o sol e mar do Rio.

 

        Agora, na sala do apartamento do Leme, o mais moço dos irmãos Rossi, Tenente Protássio, empertigava-se a esgrimir com ele e era certo o mau humor militar quando se via batido em sua trincheira.

         Sou soldado dos pés à cabeça! repetia a propósito ou sem. Domingo de-manhã Tenente Protásio, bermuda e sandália de dedo, descia à garagem do edifício pra lavar o carro, e duas horas depois subia com um quilo de jornais e revistas que lia a tarde inteira no sofá.

        Dobrava a folha acabada de ler, murmurava: Ainda estou, francamente, pra ver intelectual com coragem...

        Arno,  soltando  a fumaça do seu Half and half, fingia não ouvir.

        Protásio voltava à ofensiva: Já pensou, Dr, Arnóbio, numa metralhadorazinha nas mãos de um paisano?

         – Já, Tenente. Quando fiz o CPOR.

      O  provocador  (rindo gostosamente):  Uma calamidade, hem, doutor?

       –  Meu  Tenente,  é  igualzinho a um livro nas mãos de milico.

        Irema: Deixem de picuinhas! Protásio, você me prometeu que hoje vamos ao cinema. Quero ver! Semana inteira entre paredes em consultório, não dá!

     Jovita  silenciava.  De pena do tio e padrinho, a sós repreendia Arno com ternuras de mulher apaixonada.

          – Meu bem, e só falta você sair por aí assobiando...

          Arno (acariciando-a): Bonita frase, querida.

        Jovita   (fingindo de zangada):   Arno,  Arno, você é uma coisa

      –  Prometo  me  comportar, amor. Talvez   eu   ande irritadiço, sei lá!

      – Entenda.  Meu  padrinho  não é má pessoa, aquilo é, digamos, excesso de vitalidade. Estou cansada de vê-lo esbravejar com o ordenança e mandar por trás minha tia dar vinte cruzeiros pra ele. Sabe que contribui mensalmente pra Pestalozzi?

       O  demônio  do  Arno sussurrava-lhe: – Por que não se interna lá? Mas sorrindo:

          – Estou sabendo agora, amor! e beijava-a.

        A  realidade era que Jovita não podia entender já os dias sem a presença dele. Também Arno se sentia envolvido com a sua ternura. Porém dividido em seu sentimento: aquela ligação com a soprano Giovana Morelli. Quando a italiana lhe punha má cara, pensava em acabar com uma paixão que lhe trazia mais sofrimento que alegria, decidir-se por Jovita. Voltava ao apartamento da soprano, esta recebia-o bem, ficava feliz, e as boas intenções naufragavam.

 

        Então, ao descobrir Jovita a ligação do namorado com a outra, sofreu. Arno fabricara um punhado de tankas e haicais e, espalhando páginas afora aquelas imitações fáceis de poesia oriental, publicou em pequena tiragem: Giovanna Morelli: Árvore Florida. Tradução do italiano por um Amigo Brasileiro.

       Contava certo que o lançamento na lojinha de livros e discos, aquela Copa-Cabana que o amigo Uchoa recém-abrira para o filho mais velho, não tivesse maior repercussão. Equivocava-se. Uchoa filho, rapagão de praia, era relacionadíssimo na alta roda. Apareceu lá gente da música, do teatro, das letras. O brilho da noite Morelli reverberou.

         Jovita  estava  em  São  Paulo, a notícia voou aos olhos dela. Uma revista dera com todas as letras, além de fotos, o nome do Amigo Brasileiro...

       Os  Rossi  agarraram-se  ao  fato para demovê-la. D. Mariana, a mãe, sugeria uma viagem aos Estados Unidos. Ficaria na casa do compadre Mário e era oportunidade para aperfeiçoar o inglês. Os irmãos ofereciam-se para acompanhá-la, viajariam por várias partes. Jovita ouvia, chorava e calava. Ela e Arno estavam distanciados, deixava-se ficar em São Paulo.

           E de repente a crise tomou rumo inesperado.

           A italiana sumiu da noite pro dia. O brasiliano, apaixonado pela cantora e por sua voz, entristeceu. Logo lemos nos jornais que estreiava em Buenos Aires. Vinha para o nosso apartamento, e ele que dava atenção aos meus filhos pequenos, alheava-se. Se tentava fazê-lo conversar, respondia sim, não. Deixamos nosso primo curtir o seu fundo de poço. Até que impaciente minha mulher resolveu acabar com aquilo.

         – Você, Arno, é duro que só cristal, ninguém te risca. Vai ficar aí se ralando o resto dos dias?

           – Margarida, você está hoje muito despachada.

         – Estou não, sou. Que coisa! Por causa de uma dona dez anos mais velha...

           – Cinco, querida.

           – ...Uma aventureira.

           – Que soprano!

          – Arno, vai pra Santa Rita, vai respirar os bons ares e faz lá um balanço na sua vida. Isso é o que você está precisando, rapidinho.

           – Certo, prima.

 

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Longe de tudo que diminui

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