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26 NÃO IA DEIXAR de completar o ciclo pela Ibéria. Partiu para Lisboa.

        Tomando um quarto no Hotel, foi cumprimentar o Tejo.

     Uns   ociosos   num  posto de gasolina indicaram-lhe o caminho. Prosaicamente desceu a ladeira até às margens do rio. De pé, alma descompromissada de turista, estacou olhando. Sem pensar. Ou vagas imagens pensavam nele ressoando na calada de um fundo antigo.

    O apito de uma embarcação ligeira o desembarcou do devaneio à beira-rio. De repente o Tejo era o Tejo, plano movediço como se imóvel, levando o tufo, sobejo desprendido da margem.

        Gastou as horas da manhã a sentir a cidade.

     Perambulando  à  tarde,  já achando  o  clima lisboeta agradável, simpáticos os rostos sadios das gentes, viu-se no Café Irmãos Unidos diante do retrato, por Almada Negreiros, de Fernando Pessoa sentado a uma mesinha geométrica com o seu instrumental de escritor: xícara, o papel e caneta, o cigarrinho, e achou-se pago da vinda a Portugal.

         Abancou-se.

        O garção ligou o rádio, um fado chorou no recinto. O único freguês da mesa ao lado, que cochilava, espertou:

       – Isto  é  a  alma de todo Portugal, meu senhor! Dê-me licença.

         E transferiu-se de copo e garrafa para a mesa dele.

       – Francamente, eu quando topo alguém embevecido com estas coisas, identifico de pronto um camarada e apetece-me conversá-lo. De onde é?

         – Brasileiro.

         – Brasileiro. Somos duas pátrias irmãs!

     Passou  a  discorrer  sobre  música  portuguesa,  as excelências por todos reconhecidas da música portuguesa, a riqueza dela, sem desfazer, claro! dos cancioneiros doutras terras. Era alfacinha, crescido ali naquela Lisboa, fonte genuína do fado, dissessem lá outros o que dissessem. Quis saber sobre o nosso samba.

       Mas Arno observou que o fizera mais por deferência que interesse. Cortou o assunto, indagou se ele também compunha.

       Gargalhou, perguntando baixo se podia mandar vir outra garrafinha do seu tinto.

        – Ora, ora, não faça cerimônia. Mas vai me informar onde posso ouvir, ao vivo, o melhor fado de Lisboa.

       Veio um grandjó. Tomou uma golada, estalou a língua, e festejou:

        – O  vinho.  Bem  haja quem o inventou! Tascos fadistas, diz? Pois temos aí às dúzias, não valem um chavo. Não seria eu quem sou, não os conhecesse a todos.

         Referiu   nomes e nomes, sítios frequentados por turistas de toda Europa. No Morgado do Caniço porém era onde se ouvia o que de mais encantador se criava no gênero. Que não se havia de lá chegar cedo, à hora dos turistas basbaques. O melhor do fado do Caniço acontecia depois que estes se iam e formava-se o círculo da boemia, dos aficionados, a entrar pela madrugada e onde encontraria as mais belas raparigas de Lisboa...

        – De  resto  se  o  amigo dá-me a honra da companhia, posso ir por si à hospedagem. Ou prefere, por que não, uma pinturesca digressão por Cascais?

       Arno  considerou  muita  sorte ter achado aquele guia turístico na rua.

        – Vá buscar-me no Hotel, iremos ao Morgado do Caniço. Estou no Avis.

           – Pois, pois.

        E  o  viajante muito contente, sentindo que tudo estava dando certo na terra lusitana, foi correr livrarias.

 

           Meia-noite.

      Meia-noite e meia. Arno, que havia quase esquecido o homem dos fados, ligou para a portaria. Alguém o procurara? Ninguém. Meia hora depois, desceu. O recepcionista anotava numa agenda. Uma mulher fumando piteira lia o jornal junto ao arranjo de flores.

      O recepcionista: O nosso prezado hóspede teria acaso ajustado algum programa com o Famalicão?

           – Sim, sim, com ele.

         – Ora,  esqueça-o.  Aquilo  é um vinhaça a envergonhar pr'aí a família, senhor doutor.

           Ali, na madrugada e estrangeiro, Arno teve raiva de si, da sua boa-fé, e apanhando uma daquelas folhas sentou-se a ler sem interesse.

 

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Bacharel em Direito

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