Xavier Placer
25 LITÍGIO DE PARTILHAS numa herança milionária e codicilo caprichoso o absorveram no escritório e no Fórum. Teve também que assistir o pai: o velho Contador em quem Tio Justo confiara sempre dera para beber. Arno, levando um contabilista, foi pôr em ordem a balbúrdia dos negócios perante o fisco e a seguridade social. E nisto se passaram quase dois anos. Era muito para temperamento como o dele. Agora viajava, respiraria numas férias longas, tinha direito à uma viagem à Europa!
Para satisfação do pai e do irmão, Letícia desfizera o noivado. Arno quis levá-la. Ambos insistiram sem resultado. Não estava naquele momento para viagens, compreendessem. A verdade é que frequentava de novo as Mercedárias e com vivo fervor. Arno foi só.
Dirigiu-se diretamente a La Coruña, terra dos seus, pensando em demorar-se lá uma semana. Ficou duas.
Os tios, como Ana Lídia muitas vezes comentara, eram uns "originais".
Tio Ramón formara-se em Direito, advogava e lecionava na Universidade. Arno assistiu a duas aulas do tio. Desenvolvia uma exposição didática, porém chistosa aqui e ali, era brilhante e querido dos alunos.
Como o tio lhe lembrava muito a mãe, passava horas em sua companhia. Reparando a relativa modéstia de existência do casal com filhos – a mulher professora de idiomas no liceu –, indagou dos honorários da profissão na Espanha.
– Tengo colegas ricos. Yo particularmente no sé ganar dinero.
O outro, Tio Domingos, vivia num lugarejo de acesso difícil – el Sylvestre – numa clareira de carvalhos e castanheiros onde a ausência de ruídos era um abuso. Escultor profissional. Mas trabalhava apenas seis meses no ano, os outros seis quedava-se descansadamente lendo, tocando a gaita galega.
Caladão, murmurou que ele era um guapo rapaz, que se não estivesse nos seus dias de ocio con dignidad fazia-lhe o busto-retrato como fizera da irmã em madeira. Acrescentou: en madera, si no lo preferiese en materia mas noble... Não era desdenhoso, pronunciava as palavras fixando o interlocutor e sorria pequeno. Arno estranhou a solidão, o regime de trabalho, ele nada respondeu. Na partida, dia seguinte, no carro velho em que o levou à estação:
– Yo aún me estoy a reír...
Arno aguardou. Dez minutos depois:
– Mira, sobriño, no tengo mujer, no tengo hijos como mi hermano. Para que esclavizarme, no te parece?
– Tal lo pienso, Tio Domingos.
– Gracias. Y te lo digo: me gusta la soledad.
Rumou para Madrid.
Na viagem, Arno avaliou aquelas tranquilas duas semanas galegas de garbanzos, tortillas, churros e choros da avó. Na realidade – a avó, o tio, sua mãe – eram os três parecidos... E compreendeu a mãe, e compreendeu-se um pouco a si mesmo.
Ligou na mesma noite para Américo Castro, que se mostrou pronto a receber o conterrâneo.
Manhã seguinte, um sábado, surpreendeu o escritor entrando em casa com duas bolsas de mercado ao lado da mulher. Castro notou a estranheza em seu rosto e comentou que aquilo resultava de ser ele hijo de nuestra patria de antiguos esclavos, dónde el trabajo era vergonzoso.
Entraram para uma saleta. A mulher falou das boas lembranças da viagem ao Brasil, recordou a cascata Véu da Noiva que tinham visto a caminho da terra natal do marido, Cantagalo, pueblecillo limpio y ordenado. O escritor referiu-se às suas conferências no Rio de Janeiro, elogiou o cicerone, um Professor Baltar. Então a senhora, dizendo que ele estava convidado para o almoço, pediu licença para retirar-se.
Passaram para a biblioteca.
Aquele senhor gorducho estendeu-lhe os seus cigarros, o visitante passou a comentar as obras dele, das várias que havia lido. Sentados nas poltronas, Castro respondia, dirigia a palavra ao moço de igual para igual. Começaria ensaiando conversar em português mas embaraçava-se e ironizando seguiu usando o espanhol.
Lecionava na ocasião na Universidade de Princeton e, de férias, tinha vindo gozá-las na Espanha junto aos filhos. Externou umas vagas observações sobre os Estados Unidos, comentando em meias palavras que aceitara o convite deles para respirar mais livremente longe do clima político franquista.
Arno, que pensara não tocar em política, externou o seu espanto antigo de não entender como o povo hispânico, tão rebelde, tolerava aquela ditadura.
Nuestra Iberia, mi amigo, conoce una fase innoble de no existir, con sus héroes de decadencia, volverán otros tiempos.
Limitou-se a isso, e falou de sua presença em Princeton, na América. Que era outra cultura, que havia que entendê-los como tal e não à européia.
Lá no campus universitário, assistira a belas competições esportivas. Não, não imaginasse el joven brasileño que os estudantes americanos fossem moços e moças todos a pilotar carros e namorar. Tinham seus grêmios, convidavam pessoas renomadas a fazer conferências, e com enérgico interesse verbalizavam, debatiam pragmaticamente os mais atualizados temas. Sí, sí, la mayoría, como os pais que trabalhavam e muito, empenhava-se em estudar e pesquisar para ser o melhor, pois a competição era grande.
Arno pegou a fazer uma porção de perguntas que se tinha proposto.
Quis saber depois quando voltaria a rever a terra natal o filho expatriado desde tão cedo e que pensava do Brasil.
– ¡Ojalá fuera eso posíble! (pausa). Lo que pienso. No me gustam las dictaduras, ni rojas ni negras. La liberal Norteamérica tiene aún trazos de barbarie. ¿Explicar los motivos históricos de que no sea posíble tener gobiernos democráticos en los países de lengua castellana o portuguesa? Para tenerlos...
Apareceu em meio à conversa, uma filha de Castro a chamá-los para almoçar.
– Para tenerlos, perdón amigo Arnóbio, haría falta de las gentes se dieran cuenta de las razones de no tenerlos. Pero esto no es fácil. La mayoría de los latinoamericanos, sin excepción de nuestro querido Brasil, es "patriotera" y prefiere morir a razonar.
Durante o almoço Arno sentiu que acontecia o encontro que havia desejado. Imaginara um professor-catedrático, encontrava um homem.
No último momento o escritor autografou para o patrício gentil dedicatória num livro, vieram ele e a mulher trazê-lo à porta, a conversação se prolongou ainda minutos.
–¡Bueno viaje!
–¡Adiós!
Esplendia a tarde madrilenha. A luz vinda do céu azulíssimo acentuava o perfil das coisas. Tudo transparente, em seu lugar! Afoito para anotar a visita, Arno recolheu ao Hotel del Príncipe.
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Bacharel em Direito
