Xavier Placer
19 O QUE NÃO EXPERIMENTARIA da vida artística e literária!
Fundou com os companheiros a revistinha de letras & artes – Galáxia – que duraria bastante, quatro números. Arno aceitou a secretaria. Mas impondo condições: ninguém faria poemas pra publicar com nome da namoradinha, não haveria o pingue-pongue do elogio mútuo, começaria por ele, secretário, que não assinaria colaboração. Galáxia, revista de vanguarda, pra valer!
Borboleteavam no grupo várias jovens: Xaviera, garça buliçosa que enfurecia se a chamassem poetisa – ela era poeta! Glauce Maria, cronista, feminista ardorosa e polêmica. Sua prima, a casta Susana, franjinha na testa, que pra rir e fazer rir os outros, dizia enormidades. Ao contrário de Clóris, muy puta pero muy señora. Que repetia: – Eu sou a matriarca da minha família. Moussia Eloá, olhos verdes, Musa comunitária que deu início à derrocada... Lá se foram os draconianos princípios ético-literários de Galáxia, revista de vanguarda!
Também, distraído, cometeu suas gafes. Criticou o romancista cultor de terras malditas, o imitador do poeta maior, o ensaístazinho das citações a cada três linhas. Claro, fez desafetos.
Entretanto, não posava. Via assim e externava-se ao vento. Até a hora em que C. de Paula, que fora ghost writer de um dono de jornal e era agora vitorioso agente literário, advertiu-o:
– Meu caro Arno, você picha tudo.
Surpreendeu-se. Ele pichava tudo?
– Isso aí. Você e o Seroa. Sei bem que, nas categorias do Ovalle, Arnóbio é um dantas, um bom. Mas esse seu amigo, um verdadeiro kerniano, um impulsivo. Também sei que o escritor não elogia escritor, como mulher não elogia mulher. É em teu benefício, querido, que te digo isto.
E ponderou-lhe que esquecesse, pelo menos economizasse observações, certas farpas, verdadeiras mas que feriam vaidades. Na contramão, que podia ele esperar quando amanhã estreasse? Quando pretendesse entrar, nada mais justo, pra Academia, até mesmo pra Câmara? Ou fazia questão de desagradar, candidatando-se a ilustre desconhecido?
– Tomo as letras a sério.
– Perfeito, amigo. Outra coisa, larga a parceria com esse impossível Seroa. O negócio é outro.
Arno ouvia.
– São outras as normas. Você tem que ser o seu próprio, simpático empresário, marcando presença em lançamentos, dando entrevistas, lançando ao acaso uns paradoxos, de preferência engraçados.
– C. de Paula entende do ofício.
– Um pouco. Anunciando aí que escreves um romance, que estás estudando violino. Olha, escândalo pessoal não destrói ninguém, até promove. Por outro lado, convém o sujeito tornar-se às vezes um tempo invisível. E acendes assim a tua estrela. O resto é com a plateia, os animadores e C. de Paula bateu-lhe de amigão no ombro.
O principiante entendeu que a Literatura é Literatura, mas também política.
– Obrigado, Mestre, eis...
– De nada. Isso são apenas os preliminares.
– ... eis pra mim bom remate de aprendizagem.
Afastado três semanas em Santa Rita onde, braço engessado, fora cicatrizar o ferimento do desastre de automóvel, voltou com sua cicatriszinha de civilizado e alegrou-se ao ver o quarto e último número da heroica Galáxia na rua.
Uchôa, rude vendedor de coleções de porta em porta, vestido na maior linha, honrava-se com o relacionamento daqueles moços. Vivia a propor-lhes (como vira na grande América), instalaram um Birô Cultural de elaboração de teses e discursos, copidesque de obras e venda de originais manuscritos.
Ninguém considerava o projeto. Nem o outro, da editora. Acabou o ativo Uchôa, ele próprio, instalando uma livraria-bar. Ali o pessoal se reunia e na pior turbulência inventou uma obra coletiva.
Cogitaram os mais diversos tipos de ficção, depois de muito debate fixaram-se no policial.
– Mas policial ortodoxo! opinou C. de Paula, que se julgava o mais experimentado de todos. Nada, nada de lances passionais, de fantástico.
Vilanova, agora cineasta-amador, aparecido na livraria-bar:
– Falou. Crime. Enigma. Suspense e final correto. Filmes estão aí, é seguir a técnica da sétima arte.
Arno: Minha gente, façamos a novela de todas as novelas policiais!
Rodava o chope, o entusiasmo tomou conta do jovem grupo.
Apenas o Eugênio, que passeava a sua contra-figura comprida entre os companheiros, recusou-se com uma palavra de vinagre: perda de tempo.
Boné de pala pra nuca, o filho de Uchôa largou o refrão que repetia de cinco em cinco minutos e risada:
– Freud explica!
Discutiram sumariamente o crime, a investigação, a descoberta e a solução. Cada colaborador, bom enxadrista, dentro da maior liberdade forjaria uma série de nós para criar interesse. Honestamente porém esboçaria ganchos para o continuador.
Lançaram a sorte.
Ganhou aquele título de impacto: Uma Mulher Pula a Própria Sombra. Palmas pra Zé-Jorge. Quando a seguir saiu o nome de Seroa para autor do primeiro capítulo, explodiram palmas ainda mais fortes. O sorteado declarou-se feliz e orgulhoso, ia caprichar.
E logo logo, menos de duas semanas, convocou a turma para a leitura do capítulo.
O corpo do cabeleireiro fora descoberto pela polícia debaixo da cama da manicure. Intempestiva, a mulher interrompe erguendo-se no Tribunal do Júri onde o promotor a acusava de homicídio "com requintes dolosos de pantera."
– Meritíssimo! Admito que Vossa Excelência ponha em dúvida a minha honestidade, a minha inteligência, não.
Antes de quatro meses, datilografada por Susana, circulava em várias cópias. C. de Paula partiu a agenciar a publicação. Expectativa, ansiedade! E vieram pingando as respostas de três Casas: a) lamentavelmente programa editorial já fechado para aquele ano; b) não trabalhamos, no momento, com tal tipo de literatura; c) a terceira aceitava, com promessa de edição imediata, mas semanas depois falia.
– Olha pai, estás bobeando direto. Manda o livro dos meninos logo pra uma tipografia.
Uchôa: Qu'é isso, filho? Quer ensinar seu pai a ganhar dinheiro?
Mas pegou o original, levou-o pra uma gráfica do subúrbio.
Ressuscitava agora o morto tabloide Galáxia em Nova Editora Galáxia:
UMA MULHER PULA A PRÓPRIA SOMBRA
Cinta encarnada motivando no pequeno volume estória comovente, inventividade à Sherlock, sexo e força, esgotou.
Seroa animou-se e bancou (era o verbo corrente), a tiragem de uma novela que acabara naqueles dias. Dedicava-a "Aos queridos companheiros de Galáxia."
Pag
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Pensão Monlevade
