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18 ADQUIRIRA O HÁBITO dos passeios solitários.

      Entretinha-se em meio ao verde no Campo de Santana a pensar em tudo, em nada. Relaxava observando os lambe-lambes a fuzilar com suas máquinas de tripé os retratados, conjecturando profissões dos passantes, olhando as ariscas cotias de corridinhas no gramado. E viu pela primeira vez no lago esverdeado – descobriu com espanto – cisnes negros singrando de permeio a cisnes brancos ...

        Sentado num banco onde uma figura tranquila, postura e ar de cegonha estava, ouvi-o como se falasse mais para si do que para o recém-chegado: 

         –  Hum, não tem sensibilidade nenhuma...

    Um guarda de jardim passara, olhar lançando chamas, rodando ostensivamente o cassetete.

       Arno: Decerto o senhor não se refere ao zelador dos bons costumes.

         Não respondeu. Estendeu a longa mão:

         – Baltasar, para servi-lo! e saiu a largas passadas.

        De novo tornou a encontrar ali o estranho. Desta vez, mais acessível:

         – O jovem gosta, como eu, de se aproximar da Natureza?

         Arno quis falar no mesmo tom:

     – Venho sempre, para ouvir um dia o canto do cisne a morrer...

      Não  riu;  encarou-o grave. Depois disse que morava em Santa Teresa e falou de sua ocupação atual como a coisa mais nobre debaixo do sol. Fora escrevente juramentado de cartório, largara aquele pelourinho e não estava arrependido, muito ao contrário, meu jovem.

       Baltasar  agora  era restaurador de quadros. Preparara-se num curso e só aceitava tarefas em quantidade que pudesse dar conta. Suas restaurações? Obra de arte em cima de obra de arte, telas raras ou preciosas:

    – Para  que  mais,  se tanto basta para as minhas necessidades e da mulher?

         Não resistiu ao convite de acompanhar o homem das mãos longas ao seu ateliê.

         – Claro, Claro, nada acontece por acaso, repetia Baltasar a caminho, deslocando-se a compridas passadas. Sou bom fisiognomonista e a Voz não me engana.

 

      No  casarão   da  rua da ladeira, na saleta circular de entrada, quadros mais quadros contra a parede. Viu Arno uma publicação de luxo na borda de uma moldura: A Atlântida não é Mito.

        – Presente  do  meu  amigo Grã-Duque Otto, seu autor. O que me encanta nessa obra – acrescentou – é a proposta de um governo sábio de todos para todos.

      Arno: Um governo participativo, menos a camarilha dos palhaços.

          Temeu  haver  cometido  uma  gafe.  Baltasar  perguntou-lhe o mês de nascimento.

          – Outubro.

      – Libra.  O  jovem tem que detestar mesmo política. O homem nascido sob este signo é pela justiça.

       Correu alta cortina atrás da qual surgiu uma escada em caracol. Lépido, subiu na frente e ia dizendo:

       –  Vivo  uma   existência  aparentemente  igual a todo mundo. Mas um pouco diferente...

      A  luz  branca  de  uma  claraboia iluminava do alto. Calçando umas pantufas das várias que havia ali, pediu que fizesse o mesmo. Enquanto girava a chave da fechadura:

        – Aqui,  amigo,  é o  meu arquivo-biblioteca. Aqui me é dado harmonizar, longe do turbilhão. Aqui a Voz do Silêncio fala, desvela-me as transcendentes verdades, intuo a vida una e indivisível.

           Cortesmente dando-lhe passagem: Entre!

          Arno deparou diante de si a mais selecionada biblioteca de iniciado. Baltasar era rosa-cruz. E sentiu-se de súbito como no interior de um templo.

         Naqueles   dias,   quando  queria localizar meu primo, se não o encontrava na Pensão Monlevade, ligava para Paula Matos. Na Rua Paula Matos, em Santa Teresa, era certo. Atendia-me uma carinhosa voz, a esposa de Mestre Baltasar. Se eu perguntava a meu primo por que tanto interesse naquela casa, o novel neófito calava.

    Porém  e  não  demorou   muito  findou aquele relacionamento.

       O bom Baltasar não só teimava em tratá-lo de discípulo como queria-o armado cavaleiro na Ordem do Grã-Duque. Onde encontraria uma fraternidade. Onde veria dignitários da nossa melhor sociedade.

          Arno contemporizava. Por último confidenciava-me:

   – Nestor,  palavras mágicas – arcano,  analogia, correspondências e outras – fazem de um homem senhor do Universo. Sobretudo ouvidas em grupo. Mais ainda conversadas a dois em recinto fechado, na penumbra. Desfeito o grupo e o diálogo, à luz do dia, tudo se evapora, meu caro. E os velhíssimos enigmas continuam.

 

          Tarde da noite me bate Arno na porta.

           – Nestor, tenho uma estória carnavalesca pra te contar.

           – Carnavalesca?

          – Meu caro primo, de encabular. Não contarei a ninguém, só a ti.

           – Te acalma, e fala baixo, a família dorme.

           Estirou-se no sofá.

        – Você conhece esse cavalheiro de cavanhaque volta-e-meia no noticiário da imprensa, acusado de golpes, inclusive de envolvimento em máfia estrangeira de droga, o polêmico Grã-Duque Otto.

           – Quem não o conhece!

          – Fim de semana, fim de sábado, eu a caminho de casa e não é que fui sequestrado? Sim, a palavra: sequestrado. Por dois parceiros do Grã-Duque. Um deles no carro: – Ora todos pagam a honraria, jovem, pergaminho e medalha. Para o amigo é uma homenagem do nosso Grã-Mestre. Conduziram-me ao edifício do Instituto Histórico na Lapa. Ali, num reservado, enfiaram-me uma túnica negra, comprida da garganta aos pés, punhos de veludo-púrpura, no peito o logotipo da fraternidade – VOCO – pluma e espadas cruzadas dentro de um triângulo, dentro de um quadrado, dentro de um círculo, imagem repetida no recinto, pendente do teto entre galhardetes.

          – Conheço o local, menos essa decoração de teatro.

         – Traje  a  rigor,  casa  lotada.  Depois  de momentos de música ambiente e expectativa, abre-se a porta, e avança o Grã-Duque de mitra e espadão. Discurso breve, todos os ilustres presentes conheciam demais a Venerável Ordem Cultural do Oriente-Ocidente, a nossa querida VOCO, criada que fora pelos soberanos da Boêmia, seus augustos antepassados. Em dormição durante séculos, perseguida por forças ocultas, e que ele em nosso tempo carente, por determinação superior, reativara.

          – Naturalmente o amazonense queria...

        – Ouve-me.  Um  acólito escancarou enorme livro diante dele, o oficiante recitou em francês os Versos Áureos de Pitágoras.

           – Foi o momento alto.

        – Está  por  vir, com teu primo. Um adolescente leu os nomes dos quinze futuros cavaleiros da VOCO: prestimoso tabelião Dr. Paulino Roco, benemérito industrial Sr. Atanagildo Ornelas, premiado escultor Guto Albino Alvim e foi sonoramente por aí até o promissor bacharel em Direito, eu! Arnóbio Franco de Melo, último da fila. Baixaram-se as luzes, menos do tablado. Voltados para a plateia, as respectivas madrinhas de pelerines iam se postando ao lado direito de cada afilhado. A minha foi a própria esposa do Grã-Duque, que veio acompanhada por Mestre Baltasar.

          – Sim, Madame Alessandra.

        – Batia o Grã-Duque o rijo espadão luzente no ombro do sagrando – espaldeirada de sagração – e ao desferir o golpe, este proferia o curto juramento de fidelidade à VOCO e a madrinha lhe pendurava o espadim à cintura. E foi aí... Justo aí. Me xinga do que quiseres Nestor. Descrido, mau-caráter, tudo. Já na primeira espaldeirada no primeiro candidato a coisa me espantara. E vi-a repetir-se. Aquilo me tomou, vinha do fundo, um sufoco. Não resisti. Numa explosão, minha fisiologia em crise, rindo rindo rindo, rolei no tapete. A assistência mal terá percebido, eu estava no último terço da fila, quatro mãos me arrastaram pros bastidores. Diabo, Nestor, só acontece comigo? 

          – Parabéns.

          – O quê?

        – Isso salvou você do ridículo. Esquece. Dois golinhos de uísque recolocarão meu primo na roda da fortuna. E eis como acaba a iniciação heterodoxa de um sequestrado errado.

 

 

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Pensão Monlevade

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