Xavier Placer
17 PENSÃO MONLEVADE. Ali, no Catete, instalou-se depois de fazer escala por dois hotéis da Zona Sul. Atraído pelo ambiente boêmio do bairro, alugou amplo quarto de-frente num terceiro andar. Cada manhã o acordava o triu-triu-triu descontínuo de pardais nos galhos dos oitizeiros que arranhavam as vidraças do antigo palacete.
Desde logo descobriu que habitava um pequeno mundo.
O marido de Madame tinha a robustez de um segurança. Mas seu cumprimento matinal era meteorologicamente este: Não acordei bem, aliás não me parece que hoje o tempo vá levantar. Respeitabilidade em pessoa, o Doutor exercia sucessivas atividades. Porém nunca entendeu a que correspondia aquele título e ausências.
Já o comandante de longo curso saía pontualmente às dez pras oito de boné, ia jogar com outros velhos no Largo do Machado. Demetrius, o oferecido bailarino, mostrava o desdém à indiferença de Arno fazendo-lhe beicinho. E Joana, escriturária do I.B.G.E., alegrava o ambiente com sua boa voz. O sonho dela era ser cantora de rádio sob o pseudônimo de Jennifer. Não é mesmo bonito? O Moura era separado e colecionava moedas.
Principalmente havia o Brasilino.
Certos dias o crioulo acordava uma seda, outros, puro limão. Quando se encontrava em seus furores, era ignorá-lo. Afrontava a pessoa, se a pessoa se ofendia: – Ele não escora! e ria de banda. O Doutor se indignava, queria expulsá-lo: Esse negrinho deve ser cambondo de terreiro, a mim ninguém engana. Mas cadê que o despachavam? Madame, francesa autoritária, o defendia. Havia que tolerar o rapaz pelos seus bons-serviços (o faz-tudo ali) e pelos seus dias de bom-humor. Nestes, seda e cetim, o crioulo inventava mil modos pra agradar, serviçal, sobretudo com Arno, o único a quem respeitava um pouco: ele, a par das largas gorjetas, dava-lhe as suas camisas quase novas. Um belo dia sumiu. E todos sentiram no dia-a-dia a falta do imprevisível Brasilino.
O morador reservara trecho da parede para o grafismo de seus visitantes. Uns documentavam a passagem com a simples assinatura e data, outros com desenhos extravagantes, a maioria grafitava frases divertidas ou equívocas, alguma quadrinha. Oranice Franco:
Arno, vais me perdoar:
se lês e segues de fato
o – IF – do Rudyard,
és um grandíssimo chato.
Na Faculdade de Direito, vagamente de-esquerda a princípio, o grupo de Arno tinha decidido um dia filiar-se ao PCB. e passaram a ser ferozmente hostilizados ali por integralistas e socialistas.
O Estado Novo pusera na ilegalidade todos os partidos políticos. Ainda assim os adeptos teimavam na clandestinidade. Na pensão, entre paredes, travavam-se grandes tertúlias.
Ciência do Direito? Aquilo era rotina. Na fumarada do cigarro e bebida, quando o assunto não era mulher, debatia-se literatura, cinema novo, demolia-se e reconstruía-se dialeticamente o Universo. Falas e vozes iam num crescendo. O jargão de uso. Ideologia. Superestrutura. Luta de classes. Alienação. Berravam o Manifesto: "Um fantasma ronda a Europa – o fantasma do Comunismo. Proletários de todos os países, uni-vos!" A turbulência invadia o silêncio noturno da casa. O Doutor vinha teso no seu robe e chinelos pedir moderação, e ficava, aceitava um copo.
Partiram os companheiros uma noite, liderados por um exaltado, a atacar uns remanescentes integralistas da vizinhança. Os do Sigma reagiram e durante vinte minutos foi aquele tumulto, gritaria, desbarato dos beligerantes, correria alucinada: um companheiro dos atacantes atingido na cabeça por violenta garrafada! Carregaram o ensanguentado para a farmácia das imediações, retornando ao campo de batalha. Mas já policiais cercavam o prédio e foram todos – verdes e vermelhos – jogados de cambulhada no camburão. Na delegacia apanharam rijo, lá mofaram dois dias. – Tinham sido vítimas de uma armadilha, o exaltado do grupo era um falso acadêmico, um tira.
Estudante de Direito, matriculado ao mesmo tempo numa faculdade de Arquitetura (por onde se formaria num curso arrastado, só indo buscar o diploma quando dele precisou), fazia ainda aos domingos o CPOR.
Ali, sob o tacão do sargento, Sadhoc e ele quase foram desligados. Arno, por fazer perguntas de mais e continências de menos; o colega, um gozador, por pilhérias e abusos, de resto compensados num molhas-mãos ao instrutor.
Dizia rápido entre dentes Sadhoc:
– Sin-reír-mira-la-cara-pícara-del-caporal.
Sargento Pantoja: Eu já não proibi vocês dois de falar francês na minha cara?
Nas buquinagens pelos sebos o jovem estudante conhecera de vista sem se aproximar, alguns escritores da velha-guarda. Quase ao término do curso de Direito, passara a frequentar a Livraria Nacional. E ali enturmou-se com os de sua geração, todos de esquerda.
Conheceu Eliakim Seroa, judeuzinho um pouco mais moço e brilhante, que se tornaria aviador e um de seus maiores amigos. No fundo da simpática livraria gostosamente riu de piadas do trocadilhista, discutiu ficção e política, de passo que, observador, reparava nas gentes do povo dirigindo-se modestas ao balconista, papelucho com nome de autor e obra, e lá se indo livro debaixo do braço como se ali não fosse lugar deles. Participou de lançamentos na casa, listas de protesto ou de adesão, satisfeito no ambiente de letras e de famosos ao qual sempre aspirara associar-se.
Há veleidades que só testando. Vivia a falar em jornalismo. Por que não tentava a bela profissão? Através de certa amizade, arrumou lugar num matutino carioca.
Compareceu no melhor terno.
Imaginava o bisonho que lhe destinariam um canto de janela onde ficaria aplicadamente a caprichar frases em ordem direta, enxutas, dinâmicas. Tivesse sorte, talvez deparasse ali – colmeia intelectual – algum colega poeta ou outro que fizesse da ficção um ramo do jornalismo.
Levou um choque quando o chefe da Redação, um gordo em mangas de camisa que controlava tudo ditatorialmente despachou-o, para começar, a fazer trabalho de rua.
– Não tens, meu foca, de anotar nada do incêndio, do desastre, do assalto. Ver, ouvir, indagar. Chegando, ao pé de um redator tarimbado, repete em detalhe a ocorrência. Isto é fazer jornal ao vivo, o resto conversa.
Reportariou assim três, quatro vezes, pediu para trocar de tarefa. O chefe aborreceu-se, mas simpatizava com seu jeito, designou-o repórter de polícia. Na 77ª DP os únicos viventes racionais eram o canário-da-terra corruchiando na gaiolinha de arame e o gato pedrês do Delegado. Não aguentou mais que alguns dias.
Novo aborrecimento do chefão. Que desta vez lhe declarou sem firulas que ele não tinha queda, mais que provado, pra jornalista. Estava dando a ele mais chances do que tivera! Em consideração ao amigo comum, vá lá! colocava-o na função leve de "pentear" queixas e reclamações, CARTAS DOS LEITORES.
Agradeceu, principiou gostando. Mas secretamente decepcionado com a descoberta de que, na imprensa, nada era de graça e que fatos, personagens reais, era tudo maquiado.
Cansou em dois tempos do trabalho de tesoura e cola naquela atmosfera de cigarro e papéis pelo chão. Não, não bateu a porta violentamente no último dia nem fez a careta, desfecho dos filmes de alta-comédia.
Quatro exatas semanas de jornalismo!
Sem ir ao Caixa buscar o primeiro ordenadozinho, o foca desapareceu.
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Pensão Monlevade
