Xavier Placer
16 NA PROVÍNCIA, o último a receber comunicados é o destinatário. O mensageiro encarrega-se a caminho da entrega de anunciar as notícias em primeira mão. Quando a velha senhora, mãe do juiz, abriu o telegrama já a cidade inteira sabia da próxima volta dele.
Viram os conterrâneos descer do carro, não, não um sósia, o próprio, mas outra pessoa. Derrubara a compacta cabeleira forense, o que fazia desaparecer o grisalho das têmporas e a eliminação do bigode tornava Guerrante pelo menos vinte anos mais moço.
Trouxera um carregamento de roupas feitas e, arquivados logo ternos e gravatas, ei-lo folgando dentro de calças e blusões de magazine, pisando firme e forte nos sapatões acolchoados. Cardápio yankee. Fazendo ao acordar o seu sólido breakfast, ia acender o cachimbo na varanda.
Deixara por lá a modelo. Namorada dos primeiros dias até o final das licenças-prêmio acumuladas, quando acordou, estava na hora de reassumir, viajou atrasado para a função, para Santa Rita.
Porém mal decorridos seis meses, a Justiça de Tio Sam o pressionava. Nascera um casal de gêmeos, a modelo afirmava serem filhos do brasileiro. Que retirasse a ação, telegrafou Guerrante e partiu imediatamente. Não demorou – casado, ei-lo com a esposa americana mais os babies na terra natal.
Não chegou uma loura. Era uma morena, metro e setenta, cabeleira solta, que desde o primeiro momento encantou a todos com seu charme e gestos desenvoltos. Jéssica vestia uma coleção de minissaias e de shorts, aprendeu logo português, conquistou as gentes.
Para o marido é que os dias se toldaram. Antiga ligação, certa quarentona que ele mantivera discretamente na cidade, rebelou-se. Escândalo. Espalhou-se que o irmão, instrutor de tiro ao alvo, gerente de O HOMEM DE FERRO: Armas & Munições, ia raptar os gêmeos, que se havia tornado populares, Johnny e Liza nas bocas santarritenses – Joninho e Lazinha. Afinal, a queixosa aquietou-se quando ele passou para o nome dela a casa rósea assobradada na Travessa do Mercado.
Vigilância e Solidariedade, a loja maçônica, esta não aprovou o novo estilo e biografia do adepto. Viu tantos rostos a banda, que achou melhor desligar-se, desligou-se.
Observação do Grã-Mestre, rico empresário:
– Está aí. Quanta loucura não comete um intelectual quando levanta a cabeça de cima dos livros.
Mister Guerrante, como o chamavam agora, perdeu a auréola de pessoa respeitável. Não, não era confiável!
Veio o amigo e família visitar Tio Justo. Não se queixou de nada nem de ninguém, era visivelmente um homem realizado. Feliz, confidenciou a meu tio que a mulher esperava novo filho.
E chegou pouco depois um parente dela. Moço atlético, rosto vincado, era obstetra especializado em partos n'água, Dr. Christopher Nash que se integrou à equipe do Dr. D'Ângelis.
Na piscina azul da Clínica nasceu naqueles dias uma brasileirinha. Do Rio, de São Paulo, ocorreram repórteres a entrevistar a mãe, o médico estrangeiro, o dono da Clínica. Fotos. A Rádio anunciava. Um sucesso.
O magistrado entendeu que era chegada a hora de se aposentar.
E em pouco estava livre de códigos e sentenças, ocupação que via agora como um tédio, desgraça que lhe roubara o melhor da vida. Não quis ficar a toa, comprou um pedaço de terra a meia légua da Arca, e ninguém vinha importunar ali o plantador lidando com empregados fizesse bom ou mau tempo, embalando quivis ou tranquilão estirado à beira do pequeno lago.
Guerrante aderira à doutrina da simplicidade primordial e nua.
Christopher era autor de um folheto onde – espiritual e pragmático – apresentava o Naturismo como a chave e a fonte para o encontro de você mesmo, corpo sadio-mente liberta, interessado em tudo, participante, a felicidade total em harmonia cósmica. Guerrante traduziu-o, prefaciou-o e editou-o de seu bolso.
Evidentemente, não pertencia mais à tribo!
Compreendeu isto pela má acolhida do livrinho... Decidiu vender a propriedade, não achava comprador, arrendou-a por fim ao meio-parente e partiu com a família. Inclusive a velha mãe, que não podia já agora desgarrar dos netinhos e seguiu em retirada.
Para a América, naturalmente.
Na festinha de despedida:
– Então o Guerrante amigo abandona mesmo a gente.
– Deixo o Chris. Gostou da Neuza, que gostou dele. Tocam pr'aí a fazendola.
– Bem, que nosso ex-magistrado seja feliz lá pelos States, meus votos sinceros.
– Magistrado, hem? Aqui pra nós, Nestor, eu era é um megatério. Foi preciso viajar ao estrangeiro, ver mundo pra abrir os olhos. Em todo caso, ainda a tempo. Não, não vou lamentar... Encontrar-se um homem a si mesmo é fortuna que não se iguala a nada. Convenhamos que o Direito seja uma bela Ciência. Eu era um burocrata dele, agora, graças a Deus, sou gente.
Olhei-o da cabeça aos pés. O Mister Guerrante da chacota não aparentava nada do velhote precoce dos antigos dias. Parecia todo ele gritar: Viva the american way of living!
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Viver no Rio
