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15 QUANTO A TIO JUSTO, aquela morte ensombrou-lhe a existência. E de tal modo que não tornaria a casar.

      Surpreendi-o  naqueles  dias com seu amigo, o dentista Ludovico Jäger que a gente tratava de Luís Caçador. Tive a impressão de que conversavam há muito, não desejei perturbar.

      – duas  vezes  a  vida me feriu. Primeiro o assassinato estúpido de meu irmão no comício, e agora.

       Depois  de  grave silêncio,  confidenciou  meu  Tio  que sonhava quase todas as noites com a mulher!

        – Vejo-me escrevendo num quadro negro o nome de Ana Lídia e vão-se as letras, uma a uma, apagando-se... Sobre um chão de pedras brancas sua imagem surge de costas. Peço que se volte, permanece imóvel, e eu não sei se estou vivo ou morto.

          – É ela mesma, não é imagem.

       – Penso:  nada  mais  a atingirá, tristezas nem alegrias. Insisto que se volte. Nada. Nada. De repente uma chave cai, as pedras acomodam-se em desenhos quebrados, e ela parte rápido. De manhã, já dia claro, a figura se apresenta com a mesma intensidade, agora de frente, desaparecendo quando me detenho em alguma coisa, e logo que afasto a atenção de qualquer objeto, retorna, até que some. O Luís, ledor desses assuntos, que acha? Há nisto qualquer sentido?

          – Oh, sim.

          – Pois quero ouvir a tua opinião.

      –  Bem, tu sabes que tais matérias não são para mim ocupação de dias feriados. Está provado que livre do espaço e tempo, a alma desdobra-se e viaja. E é aí que ocorrem os fenômenos extra-sensoriais, meu caro Justo. Eu descria, até o dia em que tive a prova. Foi na minha parada cardíaca. Na maca, meu corpo levitava horizontalmente, e assisti a um crepúsculo maravilhoso. Vivi, na erraticidade, um abraço consolador com minha filha. Nos entendíamos telepaticamente. E me disse adeus envolta na minha aura predileta, a vibração azul, mas que azul!

        – Não  ponho  em dúvida a tua palavra, Luís. Mas essas visões serão realmente de um além? 

           – Oh! 

           – ... ou, não leva a mal, produtos de imaginação?

          – Os olhos do espírito extrapolam a material explicação de faculdades, de funções. Do contrário não seria o espírito. A energia...

           – Isso tudo é muito complicado para mim.

       – Também o era para este seu amigo e minha mulher, quando nos conduzíamos como uns ateus prosaicos, até que a passagem da nossa Luizinha nos abriu os olhos.

           Tio Justo havia tocado no "fraco" do bom Luís Caçador.

      Falava, falava. Ele em silêncio. Interrompeu-o e notei impaciência no tom:

       – Vamos  ao  ponto,  Luís. minha falecida mulher, eu sonhando ou depois acordado, está se comunicando comigo ou não?

          – Certo  que  está. Tu é que não vibras na sintonia dela. Faz-se muita pesquisa séria no estrangeiro. Nosso espírito continua num oceano cósmico e desse meio psíquico universal se manifesta.

            Pequena pausa.

         – Tu, Justo, não admites estas consoladoras verdades... Queres ler um livro que te trago? Não é de um desses que chamam de místicos mas depoimento de cientista.

            – Por ora não, não estou para leituras.

       – Quando quiseres.  Vou  rompendo,  vou pagar um descanso a estes ossos... Se alguma novidade do alto houver, mensagem ou outra coisa, quero notícia.

             Foi-se, passou por mim que nem me viu. 

 

             – Oh, Nestorzinho, vieste?

             – Desculpe, Tio!

             – Ouviste?

      Notei que meu tio estava perturbado. Mas não fez comentário, ele que economizava palavras e ainda assim se confessasse de falastrão; eu guardei o meu reparo fora de hora de que eram armadilhas...  

           Apresentei-lhe o manual de inglês básico que me pedira. Ali mesmo começamos nossas conversações que se repetiram, ele, eu e Arno.

        E foi apenas o tempo de treinar um pouco, viajou aos Estados Unidos. Com o juiz Guerrante, que aproveitava licenças-prêmio acumuladas e pensava trazer novidades em Direito, adquirir bom número de tratados, deixar relações para corresponder-se.

         Onde não se demorou. Pois sentiu que a mudança nada significava: a mágoa, quieta, ia com ele, dentro dele. Em três meses, o viúvo triste estava de volta. 

       – O companheiro de viagem é que parece gostou da América?

             Tio Justo num gesto vago:

             – O Guerrante...

            A fazenda Muriqui em Itaiuba fora sempre negligenciada, entregue a sucessivos administradores que não davam certo. Transferiu-se para lá. Com o capricho que botava em tudo (e agora num interesse de quem foge de si), iniciou uma plantação de café. Assim passava Tio Justo os dias. Mandava encilhar ou ele mesmo o fazia o seu cavalo manga-larga, dava longos passeios sozinho. E só retornou à Arca quando entendeu que podia enfrentar aquelas paredes, mover-se ali, conviver com o passado.

         De onde não arrendou, duas vezes mais silencioso. De passagem, lamentava ter perdido o gosto de tanta coisa, mas logo calava. No fundo, ele que já era, tornou-se ainda mais um homem solitário. O trabalho era a sua vida.

 

 

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Viver no Rio

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