Xavier Placer
14 ARNO, num crispado mutismo, revoltou-se.
Trancava-se no quarto. Chorava, e nos contatos reagia agressivo. Mãe Jovelina, triste mas resignada, oferecia ao infeliz pratos prediletos, inventava atenções. Aquilo, ao invés de agradar, irritava o adolescente todo arestas. Num rompante machucou Mãe Jovelina chamando-a de estorvo.
Largado entre as quatro paredes, ferido, pensava. Pensara algumas vezes na morte, vagamente, de modo abstrato. Agora, dentro dele, debruçava-se aquela presença sem rosto. Muda presença absurda!
Não, ela não lhe dizia nada, a morte. Não o levava a qualquer luz. Vertigem à beira do remorso de estar vivo e sua mãe morta, morta, horror. Ela, amante de viver, tão nova! Buscava um ponto de apoio, só encontrava ausência.
Punha-se a andar no quarto. Chegava até o corredor. Voltava. Aqueles espaços cheios de intimidade antigamente eram agora nada. Então vinha para a sala, quedava-se largo tempo diante do retrato a óleo da mãe.
Num fim de tarde em que o cheiro forte dos gerânios vindo do ripado apertou, foi ao cemitério. Na hora quente, o olhar aguçado viu ali somente restos. Despojos malvarridos e na terra vermelha violetas despontando, a vida indiferente prosseguindo...
Desejava sonhar com a mãe, não sonhava. Vinham falatórios da estrada. Aquilo éramos, gentes passando, aqui e agora, ruidosos e vazios... Madrugada, mergulhava num sono bruto, tinha pesadelos de inundações, desmoronamentos.
Esquecido de si, o pai preocupava-se com o filho. Insistia em levá-lo à Clínica do Dr. D'Ângelis, onde podia ficar de repouso uns dias. Precisava era sair daquele quarto! Negava-se, que o deixassem em paz.
Um sábado, a pedido de Tio Justo, o médico apareceu. Examinou-o, fez perguntas. Ora, o mal do rapaz era evidentemente psicológico. Tinha experiência, não era o primeiro caso.
– Que fazer então, D'Ângelis?
– Está resolvido, meu colega nisei psicoterapeuta em São Paulo. Uma apresentação minha, caro Justo.
Arno: Não quero saber de analistas.
O impetuoso médico: Quem falou aqui em analista, rapaz?
Lá fora os parceiros do molinete aguardavam no carrão. Buzinavam. Dr. D'Ângelis estava a caminho da pescaria de seus fins-de-semana.
Sem atender a nada, sentou-se e redigiu a tal apresentação, que entregou a Tio Justo.
– Não adianta, teimou Arno.
– Ah, é? Pois fica praí te destruindo na solidão e no masoquismo. Me desculpa, Justo! Adeus.
O pai esgotara também a paciência e já se dispunha a arrancá-lo do quarto à viva força.
Não foi preciso. Exausto, vendo que a reflexão e os dias não tornavam a sua mágoa mais pequena, Arno ergue-se sobre ela, guardando-a dentro de si. Não, não havia respostas!
Manhã. Abrira a janela e a luz inundava o seu covil. Tio Justo entrou e disse-lhe que era o dia da missa de mês.
Pai e filho abraçaram-se, e sentados à beira da cama, a dor os reteve ali na franja de um silêncio longo.
Desde aquela manhã foi Arno reconquistando o interesse de viver. Com outros olhos.
Letícia mantinha-se à base de comprimidos. Mas qualquer fato novo a inquietava como algo irremediável. Por fim, uma tristeza crepuscular a dominou.
As Mercedárias do Rio, que acabavam de fundar casa em Dois Corações, carinhosamente a convidaram para uma temporada. Mas, e o pai? Como Tio Justo insistisse, arrumou a mala e foi-se numa tarde. – Não demoro muito lá, pai.
Frescas, nos vasos da capela, rosas cortadas no próprio jardim mais o odor de cera impregnavam a casa de lisas paredes brancas, asseio rigoroso e ordem. Na meia-laranja da colina as horas, todas ocupadas, deslizavam monásticas e confortáveis dentro da pequena comunidade. Havia sempre o ressoo de um harmônio exercitando. A intervalos o toque da sineta ressaltava a quietude, vertia em seu coração uma grande paz. Até o vento, que ela temia de-menina, naquele refúgio perdia o malefício. Assim passava os dias e era quase feliz. Pensou em entrar para a Ordem. Desejou habitar aquelas paredes a vida inteira, longe, bem longe do mundo...
Não tinha nada de beata a Superiora. Era uma espanhola de caráter doce e enérgico, experimentada. Conduziu-a à sua cela:
– Muito bonito, muito louvável. Mas não convém precipitar-se. Termine primeiro os estudos que podem ser úteis, e mais tarde, se ainda se sentir com vocação, venha professar. As grandes dores, filha, são más conselheiras.
Letícia voltou para casa, para junto do pai.
Dos avós, cartas e cartas chegavam, inconsolados com a morte da filha. Quando uma delas pedia que ao menos Leticinha os fosse ver, Tio Justo numa das longas conversas de pai e filha, mostrou-lhe a dor dos pobres velhos, que viajasse!
Compenetrou-se do apelo como um dever.
Os dois avós, Tio Ramón, a mulher e as duas filhas adolescentes a aguardavam no aeroporto. A avó Isabel abraçou-se a ela dizendo-a o retrato da sua falecida, chorando num abraço que não tinha fim. No carro para casa a recém-chegada, que sabia o espanhol aprendido com a mãe, entendia pela metade aquele dialeto galego no falar rápido e vivo da parentela...
E vieram os dias que se prolongaram por seis meses de atenções e carinhos. Ela, que pensara em consolar, na realidade é que era consolada. O avô Dom Francisco tratava-a como um bibelô. A avó sentava-se à frente dela a contemplá-la, fazer perguntas e pedir que falasse na sua Aninha. Letícia devia repetir dez vezes as mesmas coisas.
As primas apareciam a tirá-la daquele clima. Ligou-se a elas e à mãe que ensinava humanidades no liceu local, e era o mesmo que Ana Lídia frequentara. Ia lá com a tia. Percorria as dependências do casarão imaginando a mãe, adolescente e feliz, sentada numa daquelas carteiras, chamada pelo professor ao quadro, saindo com a turma ruidosa das colegas sobraçando pasta e cadernos.
Conversou uma tarde com um velho mestre. Acaso ele se lembrava da aluna Ana Lídia Franco?
– Sí, sí. Hija del matrimonio Franco. ¿Tu madre? Una niña muy simpática, pero muy indócil...
De-noite, recordava Letícia muitas vezes aquela observação, tinha saudades do Brasil, e revolvia-se na cama à espera de um sono que demorava. Tantos carinhos e atenções a embaraçavam. Escrevia cartas para o pai e para o irmão.
Voltou.
Perdera um ano de estudos mas voltava de coração algo apaziguado.
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Viver no Rio
