Xavier Placer
13 ENTÃO FOI QUANDO sobreveio o golpe terrível.
Desta vez tinham vindo todos, inclusive a amiguinha Miriam. Arno chegaria à noite. Mãe Jovelina, ausente e saudosa da Arca, sentia-se em casa, não parava de arrumar.
Ana Lídia se dizia livre das crises cardíacas. Para contentamento do marido sempre preocupado, afirmava que desde o último check-up, com resultado dos melhores na opinião do médico, não sentia nada, nada.
– Graças a Deus! É o que me repete o grosseirão do D'Ângelis: Cuida-te, Justo, que a patroa inda pode te enterrar...
Ficara o casal conversando até tarde. Ela inquieta com a demora de Arno, ele a tranquilizá-la. Algum imprevisto pelo caminho, nem era a primeira vez que aquilo acontecia. Acabava de concordar, quando o retardatário entra salão adentro.
– Oh, filho, sua mãe...
– Pai, também estava preocupadíssimo com vocês. Pegamos um engarrafamento daqueles, desastre com duas viaturas do Exército perto de Resende.
Ana Lídia: Tudo bem! Eu é que esqueci ainda uma vez a tela no Rio.
– Eu trouxe, mãe. Está no carro.
– Trouxe? Olha, Justo, você afinal atendido.
Tio Justo: E já não era sem tempo... Vai apanhá-lo, filho. Entronizamos sua mãe na sala!
Ao ouvir Arno chegar, Letícia e Miriam tinham acorrido ao salão.
Ele entrou com o retrato e lembrou que estavam esquecendo uma pessoa.
Ana Lídia: É verdade. Chamem Mãe Jovelina.
Jovelina apareceu pondo nela própria a culpa do esquecimento do quadro. Deixara-o embrulhado na mesa da sala.
Tio Justo (excepcionalmente expansivo aquela noite): vamos escolher o lugar de honra pro óleo feito por Madame Jenny da Sra. Ana Lídia Franco de Melo!
Foi alegre meia hora de discussão. Cada um achava o lugar ideal e tinha uma crítica para o do outro.
Ana Lídia: Bem, a entronizada é modesta, não opina.
Havia uma fotografia ampliada com larga moldura da sorridente e bonita Ana Lídia vestida de noiva, o Jovem Justo apertado num terno escuro e colete.
Ele: Somos todos uns tolos. O lugar é esse mesmo.
Protesto geral. E a foto do casamento? Pra onde ia?
– Levem a velha foto pro nosso quarto. Pronto.
Assim foi feito com grande arruído.
Letícia: Ouçam só o que Miriam está me segredando. Que chegando ao Rio a primeira coisa que vai fazer é contar pra mãe o cartaz que se deu em Santa Rita ao retrato que ela pintou.
E foram acabar o serão de muita conversa e risos na sala de jantar.
Ao recolherem, Ana Lídia ergueu a guilhotina para renovar o ar no quarto – a LUA arredondava.
– Não, não é possível! – exclamou – ir pra cama com uma senhora Lua desta.
Tio Justo convidou-a para um giro pelo jardim.
No longe-perto ardiam as estrelas gigantes e anãs: tranquilas. Sob as constelações foram por momentos dois pontos cegos na terra adormecida. As colinas deixaram de existir, as palavras apagavam-se no falso dia que a luminosidade derramava. Acima do recorte das moitas ali, arroxeava-se uma quaresmeira só, o sereno umedecia a grama.
Um louva-a-deus saltou na saia, ela levou um susto. O relento, entranhado da emanação forte dos manacás, arrepiava. Entraram, era melhor fugir daquele friozinho! O marido lembrou os comprimidos, providenciando o copo d'água. Ana Lídia ingeriu-os, gracejando que observasse como andava comportada com as suas meizinhas...
De manhã, Tio Justo estranhou a palidez da mulher, a quietude de seu sono entre lençóis. Chamando-a baixinho, pousou a mão em sua testa e viu que estava gelada.
Ana Lídia morria aos trinta e nove anos.
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Viver no Rio
