Xavier Placer
11 VIVER NO RIO, fora sempre sonho de Ana Lídia. Sentia a província como uma existência pequena e diminuída. Ultimamente vinham de quando em quando a passeio dois ou três dias. A volta não era das melhores: a mulher silenciava, as crianças reclamavam. Tio Justo pedia paciência. Essa hora chegaria!
E chegou. Agora que os filhos entravam na adolescência, a família veio para um amplo apartamento na Lagoa. Tio Justo descia todo fim de semana.
Convite dele, insistência de Ana Lídia, mudei pra lá onde Arno dividiu comigo seu quarto de vista para a montanha. Margarida, meu recente namoro, residia na Tijuca. O Rio é praia e sol. Domingo cedo e nas manhãs feriadas, eu, meu primo e a priminha Letícia íamos buscá-la de carro para o banho de mar, desde que a estudiosa não estivesse de provas na Faculdade.
Seguindo pelo Alto da Boa Vista, atravessando a floresta, saíamos de corrida no oceano aberto. Banho no Leblon, em Ipanema ou Copacabana. Meus tios logo simpatizaram com a moça carioca, a inexperiente Letícia passou a imitá-la em tudo.
Sob a luz difusa do outono, o incêndio do verão tropical abranda. Oportunidade para devassar outras surpresas de cenário.
Eu e Margarida nos tornamos guias dos novatos.
Fizemos os clássicos passeios pela Cidade e adjacências. Subimos ao Corcovado, ao Pão de Açúcar, em torós repentinos corremos para abrigos.
Na marina da Glória atrevemo-nos numa lancha motorizada para seis pessoas. Marinheiros de primeira viagem mas confiantes no piloto da alva casca-de-noz, mareamos pela Guanabara. Prazer de estar no marazul ao banzeio das ondas, vento e sal nos cabelos, e também de oferecer aos olhos o cartão-postal da Cidade visto de outros ângulos. Excitados, nossas jovens gargantas expandem-se ruidosamente em cantos. Margarida:
Ó abre alas
Qu'eu quero navegar!
Eu sou da Tijuca
Não posso negar...
Vinte vezes após íngremes caminhadas nos fotografamos em deques, junto a quiosques, à frente de portais históricos e canhões de fortalezas, em espaços avulsos a panoramizar cadeias de morros, uma ilha. E ali estendemos nossas toalhas descartáveis de piquenique.
Algumas vezes Mãe Jovelina ia com a gente. No Museu da Quinta, ela que pouco antes estirara o pescoço diante da girafa no Zoológico, agora diante dos esqueletos de dinossauros desgarrou-se pelos salões recheios de visitantes. Quando já cansávamos de procurá-la, o alto-falante anunciou que Dona Jovelina da Conceição aguardava com urgência os seus familiares na portaria.
Torcemos em partidas de futebol. Das escadarias da Biblioteca Nacional, Pátria-amadas, ovacionamos o desfile de Sete de Setembro. No carnaval andamos por ruas e clubes. E habituados às eleiçõezinhas do interior espantou-nos, na eleição para prefeito e vereadores, a campanha milionária. Cidade cheia de outdoors, retratos, faixas. Carreatas, camionetas berrando, cantando candidatos e aquele enxame de populares, bonés e camisetas publicitárias distribuindo "santinhos"...
Rimos sim da transfiguração de Natalino, vadio crônico e inofensivo dos botecos e sinucas de Santa Rita, que Dr. Brás delegado mandava trancafiar mais os cupinchas quando tudo andava em ordem pra mostrar serviço.
Agora ali, no terno branco folgado, crachá e óculos escuros.
– Natal!...
– O próprio.
– Quem te vê e quem te viu.
O caboclinho de voz mansa, entre dentes:
– Seguinte: Tive uma chance. Sou guarda de sanitários do Jóquei Clube Brasileiro, sacou? e descolo uma grana boa dos gringos e dos bacanas.
Arno: Viva! Nosso conterrâneo deixa de ser substantivo abstrato.
Eu: Concretíssimo. Tem função cidadã.
– Vigia, logo existe.
– E fatura.
– Esses dois... Natalino, que Deus te ajude! falou Ana Lídia.
– A todos nós, Madama.
Chegada a temporada no Municipal assistimos a óperas, balé russo e peças como Estranho Intervalo e Seis Personagens à Procura de um Autor.
Tio Justo (ouvindo nós dois discutir O'Neill e Pirandello): Êta, a família mineira civiliza-se! Quanto a mim, gostei mais de Deus lhe Pague.
Depois do teatro, íamos jantar num restaurante cuja especialidade eram frutos do mar, passamos também a frequentar uma tratoria em Botafogo, quando por unanimidade não se preferia ambiente de música ao vivo.
Essas correrias, bem podiam ser assim chamadas, por toda parte, foram interrompidas com pequeno mal estar de Ana Lídia. Aquela atividade cansara seu coração. Mas, ânimo forte, logo se levantou do repouso imposto pelo cardiologista.
– Gente, estou boa: Não quero ser desmancha-prazeres.
Tinham uns vizinhos estrangeiros no edifício da Lagoa. De começo ambas as famílias esquivas, ultimanente através do companheirismo de Letícia e a colega Míriam no ginásio das Mercedárias, mais os encontros esporádicos com a vizinha na feira do bairro aonde Ana Lídia gostava de ir com Jovelina, viera a aproximação. O Sr. Ébner, um belga vermelhaço, era marchand de tableaux com estabelecimento de arte no Centro, a Galeria Ebner. A mulher, Madame Jenny, artista plástica. O marido passava os domingos debaixo das cobertas. Madame Jenny, a animação em pessoa, e Margarida conduziam a turminha a exposições, à pinacoteca do Belas-Artes, gastaram um dia em Petrópolis percorrendo de pantufas o Museu Imperial, depois varando de tílburi por margens de hortênsias até a Casa de Santos Dumont, chupando os famosos caramelos petropolitanos.
Esgotaram-se programas, jantares, novidades. Tio Justo e Ana Lídia foram os primeiros a se desinteressarem. Eu e Arno, de fino, nos esgueiramos. Devorantes, buscávamos concertos de música dodecafônica, teatro do absurdo e outros modernismos de espantar.
No segundo piso da Galeria Ebner, numa saleta reservada para artista que desejasse pintar, aulas e reuniões, Madame Jenny fez a óleo o retrato de sua amiga Ana Lídia. Moldurado, ela o pendurou na sala da casa da Lagoa e foi surpresa para Tio Justo ao descer aquela semana. Na verdade a pintora Jenny, diante da obra, sabia quando parar e dar o toque final de acabamento.
– Como está parecido! disse Tio Justo e sugeriu que o levassem para Santa Rita.
O quadro foi ficando ali.
Ele encontrava-se no Hipódromo com turfistas mineiros certas tardes de sábado ou domingo. Espairecia, pois pouco jogava, fazia uma ou outra aposta nos muitos páreos. Aos que estranhavam seu jeito dizia que estava ali para fazer higiene mental, não para ganhar. E não ganhava nem perdia mais do que os que se valiam de prognósticos e probabilidades.
Adquirira dois potros em leilão, não prosperaram, desfez-se deles por qualquer preço ao próprio jóquei. Também se maçava de tanto ir e vir, começou a espaçar as vindas. Então Ana Lídia viajava à Arca demorando dois-três dias na Fazenda.
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Viver no Rio
