Xavier Placer
8 PROFESSOR JOÃO MANOEL corrigia e incentivava o principiante. Presenteou o discípulo com um dicionário de rimas. Arno rejubilou. Recomendou-lhe para enriquecer o léxico, de certeza, o exercício das "palavras cruzadas".
O aprendiz copiava em maiúsculas os seus sonetos. Todos versando tópicos nobres – a vida, o crepúsculo, a saudade, a amizade, os deserdados – em vocabulário ricamente poético. Tudo ortodoxo. Ele sentia pudor de seus poemas, só nós, os de casa, podíamos lê-los.
E sua alegria grande foi no dia em que o amigo e professor, moço de livro debaixo do braço, brilhante colaborador d'O Santarritense sob pseudônimo de Leonam de Santa Rita, lhe dedicou de público este –
MAR DE CADA UM
EU NUNCA VIRA O MAR... IMAGINAVA
ALTOS ROLOS DE ESPUMA NUM ESCARCÉU
ROMPENDO EM SAL E CONVULSÕES DE LAVA
CONTRA OS MUROS DE PEDRA ATÉ O CÉU
UM DIA O CONHECI. DESFEZ-SE A IMAGEM
SONHADA DO MEU MAR COM SEUS SEGREDOS:
VI-O EM ONDAS E ESCAMAS, E NA VARGEM
BRANCAS VELAS ALI, FEITO BRINQUEDOS.
ENTÃO VOLTEI ÀQUELE MAR PRIMEIRO
OCULTO MAR EM MIM, MAR VIOLENTO
PORÉM ÚNICO MAR E VERDADEIRO
É NELE QUE ME É GRATO NAVEGAR
É NELE QUE EU AGORA ME CONCENTRO
EM CHAMA ARDENDO - Ó ILHA SINGULAR!
Leonam de Santa Rita! Nem todos gostavam dele, maledicentes o chamavam de "o gênio de Santa Rita". Arno era um dos poucos com entrada franca no palacete da rua principal. Quando batiam à porta, vinha a mãe viúva atender: – Quem deseja falar com o professor João Manoel? e antes de receber resposta: – Agora meu filho está com a professora de alemão. Ou: – Outra hora, por favor, no momento prepara aulas.
O poetinha a seguir desdenhou os passadistas do mestre.
Herege, jurando pelos deuses do Modernismo, estes escassamente descobertos em antologias e abundantemente nos suplementos literários dos jornais do Rio e São Paulo, assinaturas de Tio Justo, afastou-se do aprendizado ortodoxo.
Éramos ambos leitores assíduos dessas folhas: eu interessado sobretudo na política, o literatozinho nos seus poetas primeiro, depois também na política. Acompanhávamos a Revolução de 32 em São Paulo com veemência e simpatizantes.
Arno: Os paulistas são separatistas...
Eu, que já me inclinava para o estudo de História e lia tudo que sobre isso me caía das mãos:
– Ninguém sabe direito, dizem talvez pra desmoralizar. Mas profetizam por aí que, um dia, o Brasil com dimensão de continente vai se dividir mesmo em países.
Arno: Também meu Professor Lagos de História lá no ginásio uma vez falou nesse assunto. Que a Amazônia já é vista como área de controle internacional e os olhos dele se encheram de lágrimas.
Professor João Manoel, mestre de Letras, não viu com satisfação a metamorfose do aprendiz. Métrica e rima eram para Arno uma fraude, tão fácil! Numa batelada de livros, levou pro "sebo" o tal dicionário de rimas.
Admirava sim aquela libertação, a cor local, os diminutivos, as palavras de todos, principalmente as modernas – asfalto, automóvel, arranha-céu, ônibus, cigarro, você, sintomático. Para treinar, pegava composições românticas ou parnasianas e fazia substituições, desbastava-as.
Vinte vezes ao dia repetia pela casa o verso mário-andradino:
os mineiros pintam diariamente o céu de azul...
verso que aos ouvidos de Letícia soavam como não-senso.
– Nossa! Que bobagem!
Mãe Jovelina dizia que não, não ligasse e pra não judiar do maninho.
Arno abraçava-se à mulata:
Jovelina jovem!
Jovelina linda!
A cachorrinha pinscher de Letícia assanhava-se.
– Para, Guria! Para! Você não vê que meu irmão é doido varrido?
Arno: E sou mesmo! Uni duni tê salamê minguê...
Desabusado, o modernista passou a publicar n'O Santarritense.
Já não me lembro onde, descobriu certo escritor argentino: Jorge Luis Borges. Un patio, em espanhol. Traduziu o poemeto com capricho e foi a sua primeira colaboração no jornalzinho local.
O sr. Duarte da Tipografia do Atril – Duarte, Coube & Cia. – franqueou "ao rapazito do Sr. Prefeito Justo de Melo" uma linotipo. Mestre Coube, chefe da oficina, ensinou o autorzinho a manipulá-la, e o próprio compunha feliz os seus trabalhos.
Nascidos entre pelos o filho do Sr. Duarte, responsável geral, consumia-se com a revisão e qualidade da produção. Sobe e desce de linotipistas, revisores e aprendizes, cheiro de tinta e ruídos mecânicos, ordens, tudo aquilo encantava o escritorzinho. Esperava os sábados com ansiedade para ir lá. Domingos pela manhã ao ver sua colaboração sem um único "gato" era um júbilo...
Passara a estreia despercebida de três sonetos.
Não se decepcionou. Ei-lo a escrever e publicar prosas poemáticas curtas –
JARDIM DAS ESPATÓDEAS
Na superfície azul do lago a luz brilha,
rebrilha.
Há uma presença de asas no dia novo.
As espatódeas em flor vermelham no meio
do verde espalhando pétalas pelo chão.
As tilápias não sabem que hoje é sábado,
nadam com fúria n'água fria sem parar...
Eu, vadio, desço da ponte
e caminho por aí ao sol pisando pétalas.
Depois apareceu com umas composições em losango, círculo e outras figurações geométricas. Até este humor gráfico –
S I G N O S
C – a maçã dentada
E – a estante vazia
G – é gancho é farpa é anzol
H – a fachada da matriz
I – o soldado em serviço
K – a expulsa da família
M –o mar o mar o mar
O – o fruto maduro ( ou o sol a pino )
Q – o gato de botas de costa
R – de repente o Luar
S – a serpente no bote
T – a árvore desfolhada no Outono
U – a urna esperando a chuva
X – o lugar de você assinar
Quem via? Alguém lia? Somente os de casa.
Topei com o professor João Manoel, que mil vezes lhe repetia: Acompanhar modismos é fácil, meu santo.
Aproveitou para dar, também a mim, sua liçãozinha:
– Ah, esses gibis e seus leitores de histórias em quadrinhos, de resto garoto inteligente. Não concebo que real interesse achar nessas quadrinhices, com perdão do neologismo.
Eu: Injustiça, Professor. Há muito que ele abandonou as revistinhas.
João Manoel: Hum! Se não as lê às claras, às escuras as lê. De certeza.
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Beirava os doze anos
