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7   BEIRAVA OS DOZE ANOS e compunha versos. 

       – Nestor, já viu o homem da pala verde? Quero ser escritor como ele. Que bom ficar no meio dos livros, lendo, escrevendo uma porção de horas, já pensou?

       Espionava-o de fugida certas tardes, numa pensão, quando acabava as aulas. Que maravilhas – imaginava – ele não escreveria! Uma vez o homem da pala verde lhe acenara. Não tivera coragem de corresponder. Confuso, ao mesmo tempo que lisonjeado, abalara. Jamais o adolescente pensava em abordá-lo; se o via na rua, o que era raro, enviesava caminho.

        Seria ele também a sua primeira impressionante imagem da morte.

      Uma quinta-feira em que decoravam a rua principal com o tapete de serragem colorida para a procissão de Corpus Christi, seu ídolo suicidou-se. Chocou, ofendeu todo mundo. Aquilo não tinha explicação!

      Teve somente para o Lino, Locutor de Rádio, Carolino Rosa da Silva de importante família pernambucana (dizia-se), assinando Rosa e Silva. Casamento vantajoso com moça mineira que a um tempo se orgulhava e morria de ciúmes do Lino, coroara ali a carreira. Tinha mania de Mitologia e opinava sobre qualquer assunto.

      Por   Júpiter!   O  sujeito   não  colaborava  em  nossas festividades. Só de século em século consentia baixar do Olimpo, publicar umas coisinhas no Santarritense, por sinal que ninguém entendia. Com aquela figura desfavorecida, aquele nome às avessas – NATAN – que diabo de literatíssimo era esse?

Arno: Ele fazia traduções.

        – Certo, eu li algumas. Não eram más não... Mas isso, meus caros, isso é trabalho profissional. Matou-se quando a Musa lhe soprou que não queria nada com ele. Até porque...

Eu: Você fala feito orador de comício, Lino.

        Sou radialista de berço!

    Arno: Todos diziam que ele sabia sete línguas. Que em esperanto...

     – Aqui ninguém conhece esperanto! Depois, sete línguas, quem checou?

        – Se era tradutor devia saber vários idiomas.

Lino (triunfante): Isso não faz sentido. Podia ser traduttore traditore de um só. Aliás do inglês, que hoje em dia todo mundo por aí se não sabe, arranha.

    – Você sim, é que não sabe nada de nada. Só mesmo Mitologia. Não fale mais comigo.

        – Ótimo! Segue teu caminho, que eu sigo o meu, garotinho.

 

      O fato rendeu. Suicidara-se? Queimava no fogo do inferno. Um erro tê-lo enterrado no cemitério novo. De qualquer forma não lhe assistia direito a missa de sétimo dia.

       Cônego  Brasil  jogou  uma pá de cal em cima. Todo mundo em sua paróquia era teólogo! Criatura solitária e vulnerável, se alguém carecia de orações era o pobre Natan. Haveria missa e estavam todos convidados!

       Pouca gente na igreja além das habituais devotas matinais. Arno e eu entre os poucos. De passo que o oficiante prosseguia, atrás de nós uma menina de luto soluçava tempo todo. Não soluçava, gania feito cachorrinho novo e explodia a intervalos:

        – Meu padrinho! Eu quero meu padrinho!

    No final o vigário fez a pequena assistência ajoelhar, improvisou breve prece:

         – Senhor, que a alma do teu servo Natan...

        A dona  da  pensão,  antecipando-se aos nossos pêsames, veio agradecer chorosa a nossa presença.

        – Louvado  seja  Deus!  ele  tinha  amigos. Obrigado! Meu irmão só queria passar despercebido. Ah, se tivesse escrito um livro seria conhecido do mundo inteiro.

       Em casa, achou-se um escrito. Natan declarava que desde cedo se sentira um inviável, mas isto era assunto seu. Somado tudo, fora um homem feliz, seu gesto final absolutamente consciente. Abominava tititis, os ociosos deixassem, por favor! o nome dele em paz. Que o cremassem! Beijos, muitos beijos para a sua querida afilhada Vaninha.

       Também aquilo logo esqueceu. Naqueles dias aparecera na cidade um italiano, Giacomo Petraglia, ele, a mulher e a cunhada, num trailer – PINOCCHIO – todo enfeitado. Interessante e escandaloso, exibiu o italiano seus fantoches, divertiu crianças e adultos, um sucesso. Partiu, voltou e ficou.

 

       Depois  do jantar conversava-se sobre o assunto. Eu falara na menina chorosa e na frase-necrológico da irmã do morto.

     Ana  Lídia,  embora lamentando-o, coitado! condenava o gesto.

        – Outros verão uma prova de coragem, eu disse. Beber um copinho de guaraná com cianeto de potássio...

         Arno: Quem sabe se matou pelo pavor de um dia morrer?

         – Ou então do terror de ficar imortal.

      Tio Justo: Oh, criaturas! Jogam conversa fora, foi só um desperdício.

          Arno: Claro, a gente nasce por acaso.

Ana Lídia: Hum! O quê que você quer dizer, Arninho?

        –  Isso  mesmo.  A gente não é livre? Se ele quis morrer, mãe, muito que bem.

       – Arninho, Menino sem coração! Você já viu, Justo? Olha, Nestor um pirralho! Vá para o seu quarto, imediatamente, e pense no que falou.

      Eram  peremptórias  as ordens da mãe. Ao retirar-se, o expulso sorriu pra mim e pro pai, compreendendo-nos de seu lado.

       Ana  Lídia  (abanando a cabeça):  Outro  dia  achava  a cremação a coisa mais natural.

          Letícia (no colo de Tio Justo): Bem feito, não é, pai?

         Com os dedos abertos das duas mãos em concha, batia-os devagar, atenta ao movimento.

          – Bem feito. De-noite até vai sonhar com ele.

       Mal  acabavam  estas falas, Arno reaparece. Espavorido, lívido. A mãe ergueu-se, o que fora, o que fora?

          – Ora, nada, nada! e atirou-se na cadeira.

          Tio Justo: Filho, o que está sentindo?

          Veio a mãe com um copo d'água.

          – Bebe, meu filho. Você está nervoso!

          Arno recusou.

     – Não estou nervoso. Não vi nenhuma viúva negra no travesseiro.

          – Diga. Você o viu? Abra seu coração.

        –  Não  quero  falar.  Me deixem, me deixem! e engoliu a água.

          Manhã seguinte:

          – Nestor, você acredita em alma do outro mundo?

          – Às dez da noite, como ontem, e depois daquela conversa na sala...

           Contou.  Ao  acender  a  luz  do  quarto,  um  calafrio  lhe

percorrera o corpo. E a sensação de uma presença estranha a seu lado. Tudo num rápido segundo.

          – Qual! foi o medo.

          – Isso mesmo. O medo, Nestor.

      Esquecia que, via das dúvidas, trouxera aquela noite o colchão para o meu quarto.

 

 

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Beirava os doze anos

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