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3 ERA O TEMPERAMENTO DA MÃE. Tanto, que viviam em perpétua colisão. Nos entreveros de mãe e filho:

      – A alguém tinha que sair, dizia Tio Justo.

      – Ana Lídia: Pois a mim é que não foi.

      – Mas se é o seu retrato, minha querida mulher.

      Ana  Lídia.  Ativa,  ia  e  vinha  atenta  a  tudo  na    ordem doméstica. Tio Justo empenhava-se em cuidados com a saúde dela, que nem ligava, detestando conversas de doença e morte.

    Seu hobby: plantas. Gastava horas matinais no ripado de avencas, violetas africanas, gerânios e quantidade de antúrios e gardênias que, em vasos, eram trazidos para decorar o interior da casa.

    De noite, pois não sabia ficar a toa, distraia-se fazendo tapeçaria, enquanto escutávamos todos radionovelas. Alfabetizara cedo os filhos, ensinando-lhes música e espanhol, treinando-os a escrever cartas para os avós. Arninho gostava de escrevê-las, mas detestava o piano; Leticinha, a irmã, aceitava as duas coisas.

     Mas a ativa e exigente Ana Lídia não suportava aquilo que chamava verdadeira casa de repouso. Ainda acabava tendo visões, dizia. Então pegava ela mesma o carro e ia ao Centro de Santa Rita postar cartas para os pais, comprar revistas ou visitar uma amiga.

    Esta era uma senhora carioca, casada já madura com o proprietário de hotel-fazenda. Viajada, vivia do passado europeu. Uma urna de mágoas: da filha, que a esquecia; do marido mineiro: – Marido mineiro, minha amiga, pode tudo, mulher de marido mineiro não pode nada. E ia por aí... Ana Lídia voltava geralmente pesarosa e Tio Justo não aprovava aquelas visitas.

    Meu tio, com as quatro fazendas - gado de corte, leite e laticínios - duas vezes prefeito de Santa Rita e participante quando não motivador das iniciativas progressistas da cidade, ficava à margem de certos detalhes. Criara uma escola para os filhos de empregados e meninos da redondeza; Arno e Letícia cursaram com eles o primário.

      Assim  era,  e  discretíssimo.   Refugiava-se  canhestro  na reserva ou na ironia monossilábica, para muitos passava por orgulhoso. Seu lazer: solitários passeios no seu manga-larga e o pôquer duas vezes na semana, à noite, com o Tabelião (eterno presidente da Câmara Municipal), o Coletor, o Veterinário-Presidente, o Vigário e o juiz Guerrante. Vez por outra aparecia uma viúva - Dona Délia - que desmontava ruidosa do seu cavalo ajaezado e sacudia o rebenque, se preciso na cara da pessoa. O Coletor (fora seu noivo): - Chegou a perturbadora! Ana Lídia escondia-se dela.

     Leticinha era o avesso da mãe e do irmão. Frágil, retraída, principalmente medrosa. O uivo da ventania e o relampejar nas trovoadas punham a caçula nervosa, agarrava-se à mãe. Chorava: Nossa! Nossa! Arninho acabava se irritando: Letícia, sua boba! o vento é o ar em movimento. Só voltava à calma quando a tempestade, cansada de açoitar as vidraças com relâmpagos, serenava. Parecia-se bastante com o pai. Ele punha-a no colo, beijavam-se e diziam-se ternuras, o que somente de século em século Tio Justo conseguia do indomável e insatisfeito Arninho.

      Já entre Ana Lídia e Arninho era outro cotidiano.

      A  caixa  de  bombons aparecia logo logo esvaziada? fora ele. O que nem sempre. Enlameava um pouco a roupa, tinha pronto que trocá-la. Gostava das setas, pandorgas e outros brinquedos feitos por ele e pelos filhos de empregados, ela enchia-o de brinquedos encomendados no Rio, quebrava-os, daí grandes clamores.

 

       Ana Lídia, nascida em Itaiuba, fora educada na Espanha.

      Don Francisco, moço empreendedor, recém-casado emigrara de La Coruña e radicado em Minas tornara-se comerciante, forte comerciante. Logo após a guerra de 14, Ana Lídia caçula, os dois outros irmãos - Ramón e Domingos - voltara toda a família para a Europa. Aos dezoito anos, vindo conhecer a terra natal, hospedada na casa da madrinha, ali a conhecera o jovem Justo que se apaixonara à primeira vista pela "espanhola". E o casamento aguardou só o tempo de chegar a autorização expressa dos pais. Casara-os Padre Brasil, jovem vigário de Santa Rita da Serra. A lua-de-mel do casal foi uma visita a La Coruña, que se alongou até Madrid.

   Nem Arninho nem Letícinha a chamavam de mamãe. Chamavam pelo nome: Ana Lídia. Mãe era mãe Jovelina, a mulata robusta e mansa que amassecara a pequena Ana Lídia primeiro em Itaiúba. Quando a família Franco retornara à Europa, a moça Jovelina acompanhara a "sua" menina.

       Em La Coruña de começo tudo bonito para a babá: a neve, as roupas de lã, as pessoas, a fala das pessoas. A seguir, as flores murcharam e a curiosidade. Por último, diante do prato das batatas no leite, vinha-lhe à boca o gosto de feijão tropeiro; os churros não tinham o sabor do bolo de aipim. Mal tocava na comida.

      Aninha, a menina Aninha contaminou-se da tristeza da babá. Quando ouvia falar em sua volta para o Brasil pegava a choramingar. Não, não, queria Mãe Jovelina, no te vás, Jovelina! Abraçava-se a ela, beijava-a.

     – É preciso despachar essa criatura para o Brasil, repetia Don Francisco, Dona Isabel, afeiçoada à boa mulata, resistia ao pensamento de repatriá-la. Aquilo passava! e levou ao médico, que lhe receitou um cordial.

      O banzo apoderou-se de vez da brasileira.

 

    Surgiu uma oportunidade. Uns vizinhos emigravam para o Brasil. Encomendaram-na à família e veio para a sua terra, para a paisagem às margens do Pucaí onde abrira os olhos para a vida e era feliz como um lagarto ao sol. Terminou aí a aventura espanhola de Jovelina.

      Em   Itaiuba  casou  com o primeiro namorado, tivera meia-dúzia de filhos e agora criava os filhos de "sua" menina. Trabalhava de manhã à noite. As duas empregadas se queixavam: ninguém sabia fazer as coisas a contento dela e, calada, refazia o já feito toda vez.

    Ótima em contas de cabeça, sabendo de cor e salteado a tabuada, ali, na ponta da língua, em alfabetização não saíra das primeiras letras.

      Tio Justo, que gostava de brincar com ela, um dia perguntou-lhe em nossa presença:

     – Hoje, Jovelina, você vai me dizer quantos 9 tem de 1 até 100?

     Baixou a cabeça, beiços em bico, muito concentrada. Antes que qualquer de nós achasse a resposta:

       – Tem 20 mesmo, seo Justo.

       – Palmas! Palmas para Jovelina!

     As duas crianças a adoravam. Ana Lídia não demonstrava o menor ciúme. Quando os punha de castigo, por trás lhe dizia: Mãe Jovelina, vai lá ver os teus pimpolhos.

 

 

 

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Era o temperamento da mãe

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