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2   OCASIÕES   motivados  pelas  particularidades  que  nos referiam de lugar e por um curta-metragem, programamos conhecer São Thomé das Letras, em Minas, na primeira oportunidade.

       Assunto longo de nossas conversas e até o jovem professor do ginásio, João Manoel, queria juntar-se a nós. Tio Justo e Ana Lídia não paravam de nos animar.

      Porém à última hora não aconteceu. João Manoel desistia. Fez mistérios a princípio, acabou dizendo. Sonhara a mãe com ele envolvido em desastre. De certeza, um pesadelo. Desculpássemos, não ia matar a mãe. Depois soubemos que, enquanto eu e Arno andávamos por águas do norte, João Manoel e Dona Branca haviam partido para o sul...

 

        Navegamos sim o São Francisco.

        Sonho  antigo,  sempre  adiado, percorremos o chamado rio da integração nacional, o Chico de castanhas águas na voz do povo.

        Uma semana do País das Gerais -

                                Pirapora

                                     São Francisco

                                          Januária

                                               Bom Jesus da Lapa

                                                                           Barra...

                                           à Cachoeira de Paulo Afonso.

 

    O "gaiola", atracando em precários cais de madeira, ia recolhendo morenidades de cabelos corridos, outras desembarcavam nos vilarejos assinalados por uma torre de igreja, com redes, canastras, papagaios, filhos ao colo.

       Heróico,  o vaporzinho não brincava em serviço... Barcaças de atrevidas carrancas a proa passavam, havia acenos de cá e de lá. Nosso barco desviava de bancos de areia, ilhotas recortavam-se ao largo onde um cavalo pastava e junto a canoas curumins banhavam-se nus.

      Por vezes a frágil embarcação adernava. Aquilo a mim a a Arno nos deixava apreensivos, o povo é que, ruidoso, roía rapadura, matava a sede em fatias de melancia, nem estava ali. Como o pequeno grupo do baralho, de cócoras, no jogo a dinheiro.

    Cícero Pedra sanfonava todo o tempo, a filha magrinha garganteava:

Não sei se vá ou se fique

Não sei se fique ou se vá:

Partindo não fico aqui

Ficando aqui não vou lá...

 

      A  assistência  batia  palmas,  dava vivas e o sanfoneiro fechava invariavelmente com isto:

 

É um sapo dentro de um saco

O sapo batendo papo

E o saco com o sapo dentro

 

enquanto a esperta moreninha corria o pires.

      A paisagem fluvial encolhia entre barrancos ou abria em cintilação de escamas matinais no rio-mar. Ao crepúsculo, O Sol era um globo de fogo suspenso. Boquinha da noite, acima do risco do horizonte vermelho, água e céu, asas negras pairavam.

 

         Pernoitamos na velha cidade da Barra.

      À espera do almoço, observávamos na sala de entrada da hospedaria uns quadrinhos com umas formas estilizadas, quando um rapaz entrou.

     Voltei-me, pedindo que nos explicasse que heráldica era aquela.

     Ele (sarcástico):  Heráldica de curral... Asa, Flor, Roda, Flecha, Galho. Marcas de ferro do gado por estes sertões.

         Arno: Faltou o entrelaçamento MR.

         – Bem, esse é de minha gente.

         Chamáram-nos para o almoço; perguntei-lhe se não queria nos acompanhar, aceitou; fizemos um conhecimento baiano, falou-nos sobre seu livro.

       Arno  (ao café):   Que sorte a nossa descobrirmos alguém que escreveu sobre o São Francisco!

        Candido Jucá,  sertanejo  de  olho  azulado,  era  antes  de tudo amargo.

       – Mais  difícil,  moços,  é  topar  por  aí quem não escreveu sobre o São Francisco.

   Aplaudimos a boa palavra, e ele nos convidou para terminarmos a conversa na casa dele, ali perto.

       Vejam,  me  formo  em  antropologia  no  Paraná  pra  vir vegetar neste buraco onde nasci, a lecionar em ginásio. Faço as minhas pesquisas sobre linguagem não-verbal, pra quem?

       Folheávamos   interessados  o   original   datilografado   a capricho do livro de Cândido Jucá Moreira da Rocha, quando um homem pálido se precipitou saleta adentro:

        – Xará! Xará! Me dá cinco mil réis.

     Depois, Candinho, disse-lhe. Agora estava ocupado com aqueles moços. Voltasse outra hora.

        O homem  pálido  não  se   movia.   Calava  e  esperava,   braço retesado, mão em concha. Pedi licença ao dono da casa para dar o dinheiro, sem esperar resposta estendi ao pedinte uma nota de dez cruzeiros.

         Ele pegou a nota, rasgou-a com brusquidade e jogando pro alto metade:

        – Só quero cinco! e girou nos calcanhares.

     Quando  veio de correr o trinco da porta, Cândido Jucá murmurou um seco pedido de desculpas. O que nos arranjara! Candinho tinha fixação nele.

     Contou que a criatura estivera alguns anos recolhida no Hospital-Colônia da Bahia, o haviam afinal mandado pra casa, vegetava por aí. Com a mãe, bisneta de latifundiários, antigamente um dos clãs mais poderosos da Barra. O avô paterno inaugurara a derrocada gastando na política. O pai tinha o vezo das demandas e processos, liquidara os últimos tostões, o filho era aquilo. Capaz de voltar (disse entre dentes) pelos outros cinco, a lógica lá fora era outra.

        E passamos a longa tarde, tarde de fresca viração soprando do rio, a tomar água de coco no alpendre, a conhecer esplendor e miséria daquela região ribeirinha, mundo arcaico, sua gente. Mais aberto, era claro que o sertanejo lavava a alma naquele encontro. Ao nos despedirmos:

        – Ficamos amigos os três, de graça.

 

       Morena baiana - astróloga - espionada de viés pelo marido, no último dia a bordo vaticinou nossos destinos. Voz sonora e firme, no salto alto e turbante, tranquilizou-nos de entrada:

          – Os astros inclinam, não obrigam, simpáticos jovens!

       Ritualmente declinamos nossos nomes, ano, mês, dia hora de nascimento. Consultou devagar um livrinho encadernado em couro, concentrou-se juntando as mãos de anéis, recitou compridamente os horóscopos de cada cliente. 

     E nossas auras eram positivas, viagens, tropeços alguns, insignificantes, êxitos profissionais, amores, o moço Arnóbio alerta nas conjunções do deus da guerra Marte e Vênus, seu primo Nestor nos decanatos de Mercúrio e Saturno...

      Afoito, eu: Mas nenhum, nenhum eclipse, tragédia oculta, Pitonisa?

       – Nada, é a mensagem. Alerta! Ir à luta. Querer é poder!, simpáticos jovens!

         Arno pagou a conta.

         – Viajar é ser moderno.

       Vinha  Arno  carregado  de  anotações sobre tipos, frases, vocabulários, folhetos de cordel, "vitalinos" de barro, coisas do sul e do norte.

         ...logo que chegávamos, organizava o material.

         – Não sei o que você vai fazer com tanta fichinha...

      – Um dia, ó Nestor de experientes falas, quando estiver esquecida, esta maçaroca bem pode render um livrinho. Eu dedicarei a meu primo, aceita?

        – Nunca vi. Não fosse tanta fúria de documentar, diria que Arnóbio Franco de Melo é o perfeito viajante.

     – Ótimo. Olha o título da futura obra-prima: O perfeito Viajante. Garanto que não será mais um guia "culto" sobre cidades. Será um livrinho ultra-vivo.

 

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Nasci corre-mundo

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