Xavier Placer
1 – NASCI CORRE MUNDO, repetia Arno de moço.
E acrescentava:
– Não se diz que o mundo é um grande livro? Está aí, quero fazer a leitura dele de capa a capa.
Viagens. Sua primeira paixão. Curiosidade, atração pelo desconhecido e também necessidade de movimento de uma natureza a quem tudo que era vivo solicitava. Deitava tarde, levantava cedo. Nada fácil acompanhar aquela adolescência que não conhecia cansaço nem tédio. Energia e tempestade, um tornado.
Brasil de sul a norte no tempo de estudante em férias. Com algum colega. Comigo. Com que interesse arrumava a mala, munindo-se previamente de guia e mapa. Máquina a tiracolo, pelo caminho interessava-se por tudo: conversava com tipos, enfiava por becos, sumia, reaparecia, estava em toda a parte, em nenhuma. Devorador de espaço, reduzia a dispersão a fotos e notas.
Na Paulicéia, nossa juventude curiosa deslumbrou-se com a modernidade de grande centro tentacular, avenidas, martineles, multidão de rostos e sotaques estrangeiros, tudo motivo para dias plenos, à garoa ou ao sol...
De volta de andanças, um senhor Azambuja, baixo e gordote, nos divertiu mais de uma vez. Juntávamo-nos ao grupinho que o rodeava no rol do Hotel, sequer entendendo que o gaúcho estava ali cumprindo expediente pra fazer rir por ofício.
... Aí, nomeado fiscal de rendas, fui bater com os costados no Ceará. Lá o Azambuja caiu numa boa, me associei a um gringo fabricante de quê? adivinhem paisanos!
Ninguém se arriscou.
– De gu-ar-da-chu-vas.
Alguém: Enricou na Terra do Sol.
– Enriquei, tchê? Aqui me têm... falido.
Apresentaram-nos. Veio a costumeira pergunta - de onde eram os dois guapos rapazes?
Eu: Das Minas Gerais, sim senhor, mas do Rio, de coração.
Azambuja jogou os braços pro alto de sob o poncho:
– Tchê... Somos todos cariocas!
Engatilhou de quebra novo número.
– Ora o Rio e seus torós! Vejam se podia esquecer... Curiosos assim na grade do palacete do otorrinolaringologista. Um calvo de bermuda e sandália. - No pico do temporal o matacão rolou encosta abaixo na madrugada pousando no meu salão. A família dormia. O matacão, acreditem, vizinhos! não quebrou um só cristal, não tocou no meu oratório. Contava ufano e sorrindo a insólita pedrada de granito...
– Como se tivesse caindo do céu.
– Exato. Era, além de cirurgião, oblato beneditino.
– Que é oblato, Azambuja?
Maravilhou-nos o céu azul de Curitiba.
Enviávamos albumzinhos e postais pros familiares e amigos. Arno alongava-se em cartas divertindo com pitorescos de toda sorte, a mãe, o pai e Letícia, a irmã.
Em Blumenau o coração do viajante balançou.
Na loja de cristais Hering a gerentezinha nos sugeriu gravássemos ali, na hora, nossas iniciais nas duas taças que compráramos. Já a casa fechava o expediente. Enquanto eu assistia à habilidade do gravador na pequena banca, ouvi do balcão Arno a convidar discreto a lourinha para saborearem um srudel ou, se ela preferisse, um chopinho.
A gerentezinha (baixo): Porque não um strudel e junto um chopinho?
Segui com eles até à porta da choperia. Para não empatar o caçador nem a caça, deixei-os, ela rindo do alemão que ele se metera a falar.
Só o vi no dia seguinte de manhã.
Ficamos uma semana em Blumenau. Eu insistindo na partida: – Um programa por noite, Arno? e ele a me dar tapinhas nas costas.
E rumamos pra Foz do Iguaçu. As afinidades eletivas! Dali mandou pra recente amiguinha, com vasta missiva, um colar furta-cor da Boêmia, ainda por algum tempo, Santa Rita da Serra-Blumenau cruzaram cartas.
No outro ano, foi a vez, tinha que ser, do nordeste.
Salvador. Na escadaria do Grande Hotel da Boa Terra, logo de chegada, um desses artistas de rua. Paramos a observar a habilidade do retratista ampliando de uma foto 3/4 uma "cabeça" de criança.
O barbudo nos convidou a posar. Era "internacional".
– Hermenegildo Dantas, para servi-los.
– Outra hora, certo?
Dia seguinte, mal nos põe os olhos em cima, o homem da indumentária branca largou correndo com prancheta e tudo. Perturbado? Seríamos uns empestados?
Tardinha, ao retornarmos, acercou-se meio canhestro. Desculpássemos! Ele era da Lei. Fora por bem de nós três. Na primeira parte daquela sexta-feira, o guia lhe avisara que não devia ter contato com dois forasteiros...
Em viagem, Arno tinha imprevistos assim:
No interior de Pernambuco, Garanhuns, arrematou na feira de sábado um gaiolão inteiro de pintassilgos e partiu com decisão.
O vendedor de pássaros ficou olhando espantado. Ouviu-o murmurar: De uma banda chove e da outra vem...
– Arno, qu'é isso?
Vi-o, acompanhado por um bando de meninos e meninas, caminhar para o extremo do terreno e, gáudio da garotada, libertar os pássaros pra todo o ar.
Meninota morena: Moço! Moço! o senhor é muito bonito soltando os bichinhos.
Arno: Ôi, como você se chama?
Ela: Adivinha! Adivinha!
– Você é a guria dos olhos de jabuticaba. Quer casar comigo?
– De jabuticaba? e correu arisca como uma lebre para junto da mãe.
Acenou-lhe, ela voltou. E o moço bonito pagou alfenim pra todo mundo, outros pintassilgos alvoroçados em torno dele.
Uma sortida daqui até São Luiz, insisti com meu primo que, em Recife já quisera retornar, decepcionado de não conhecer ali o ausente Guilherme Freyre.
Lembro-me nossa ida a Cantagalo, RJ, onde nascera o polígrafo hispano-brasileiro Américo Castro. Que fazer no Maranhão?
– Então a figura do barbeiro, na Praça dos Melros, não valeu? O bairrista a apontar uma casa de comércio miúdo onde contávamos encontrar um museu, eloquente a referir a visita do filho à terra natal, foguetes, lauto banquete com brilhantes discursos e sonetos?
Na Universidade, almoçamos com dois mestres, um sociólogo e sua assistente.
Ela: Aqui, tal nos vêm, compomos um jovem casal assaz conhecido nos meios universitários maranhenses.
Ele: Ilustres amigos, aqui lhes ofereço meu décimo modesto livrinho.
Nobreza obriga, fez Arno as honras à altura:
– Caro e culto professor Ribamar, bem se adverte que em nobre estilo traça, conscientemente, o destino plural e duradouro de sua gente, e obra.
Vivas palmas ressoaram numa sala de aula.
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Nasci corre-mundo
