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S O N H O   III
   O insensato disse ao seu coração: Não há Deus.                             
Salmo, XIII, 1.

     UM SINAL apareceu no céu. Um ponto luminoso, de brilho diferente, foi visto no céu noturno. Que era uma estrela, nada havia de singular, disseram alguns. Mas o brilho cresceu no céu, e aqueles mesmos que haviam falado, calaram-se cautelosos. 
   Realmente, não era uma simples estrela. Ao amanhecer, a imensa luminosidade já mudara de lugar e não se assemelhava a uma estrela - era um cometa. 
     Era um cometa, e um grande medo nasceu nos corações.
    Em pleno meio-dia, cegante como uma rosa de fogo, intenso como um Sol mil vezes mais poderoso - inferno de luz - irradiava-se pelo espaço infinito uma esteira feérica, que parecia querer tocar a Terra, atingi-la, abrasá-la, chocar-se com ela e parti-la ao meio, destruindo-a num cataclismo...
    O povo acreditou no fim do mundo. Muitos fugiram; muitos foram para os templos suplicar a Deus tivesse piedade dos humanos; alguns mataram-se.
     Depois, aos poucos, o fenômeno desapareceu. Desapareceu no céu; não nos corações, neles um temor ficou e grande medo.

 

      FOI ALGUM tempo depois. Nem todos sabiam, tais como as crianças e os loucos, mas a ameaça pairava no ar. 
   Um pastor descera da montanha. Confiara o seu rebanho a um companheiro e baixara à cidade, arauto da terrível notícia.

     Verdade? Difícil, talvez impossível saber. Novas circunstâncias haviam-se somado às primeiras e, a essa altura, a origem do magno acontecimento esbatia-se na bruma de detalhes possíveis, informações de terceiros, argumentos francamente absurdos ou absolutamente verossímeis.
    Um perigo ameaçava a cidade, e iminente. O pastor que descera da montanha, abandonando as ovelhas que lhe davam alimento e roupa aos filhos, ali estava para afirmá-lo: a cidade ia ser atacada por uma alcateia de lobos.
    Não falava levianamente. Trazido à presença das autoridades, relatou fatos testemunhados "por aqueles olhos que havia a terra um dia de comer" - a jovem Abigail, de dezesseis anos, arrebatada pela garganta; o menino Joaquim, estraçalhado à vista dos próprios irmãos, que não lhe puderam valer. E desfiou (embora rude zagal tinha a palavra fácil) casos e cenas de estarrecer.  Tudo indicava que a cidade, de resto indefesa, seria o próximo objetivo, a presa imediata dos lobos.    
    Não agradou aos responsáveis este opinar franco, de um rústico. Uma palavra perpassou nos lábios, que não foi pronunciada: louco!
    Prenderam-no. No cárcere, como insistisse, retiraram-lhe o alimento, não lhe deram paz. E quando, seviciado, o tiveram reduzido a nada, os gendarmes o conduziram uma noite às muralhas da cidade, onde o "suicidaram".
    O principal dos verdugos:
    "Eis um ótimo pasto para a fome dos cachorrinhos!"
   
O vento frio cortava.  Esfregaram as mãos; e antes de romper a caminhada beberam um trago.


    CALOU o pastor, e nada mais.

   Um mal-estar começou a perturbar as almas, ainda as mais fortes. Em pouco, até os animais domésticos vozeavam, nitriam, escoicinhavam, indóceis e inquietos, farejando a aproximação do inimigo. Assim em terra. No ar, havia algo de pressagioso no voo dos pássaros.

   O zelo apostólico também requer prudência. No primeiro domingo, subindo ao púlpito, o deão fez uma prática recomendando como remédio salutar a confiança em Deus e orações específicas contra lobos.

    Porém no  auge da sacra eloquência  aventurou-se  num rapto de inspiração a descrever " a sanguinária besta de ventas dilatadas, olhar em chispas, habitante dos lugares desertos, onde assiste aquele outro monstro, o Espírito do mal", excedendo-se desastradamente nas tintas.

      "Salvem-me, salvem-me, não quero morrer!"

      Era uma mulher. O pavor de ser devorada pelos lobos ensandecera-a, Rasgando as vestes e gritando, atirou-se porta afora em direção à montanha, ao encontro das feras.

   E com ela precipitaram-se os presentes, cujos olhos em pânico imaginaram vê-los acometer aos lobos, à alcateia de lobos, pelo templo a dentro. No atropelo da fuga sete crianças e mais cinco mulheres, das quais duas grávidas, foram pisoteadas e mortas.    

       QUEM ousava ainda julgar a ameaça dos lobos um puro fato natural? Ali estava o dedo do Altíssimo. Pecados ocultos haviam clamado ao Céu, e como às cidades bíblicas, como outrora Sodoma e Gomorra, o Senhor a lançava de si, enviava-lhes uma provação.

     Má hora e lugar escolheu o principal dos gendarmes. Não cria em Deus porque nunca o vira; por igual motivo negava-se a crer em lobos. A admiti-los - palavras suas - seriam assim como uns cães menos mansos.

       "Quando vêm eles?"

       Era na praça. Foi-se o povo amotinando em torno do imprudente.

       "Quando vêm eles?"

     Perdeu-o a sentença oracular de um ancião. Tinha este uma intensa cabeleira branca e uns olhos ausentes de estátua. No tom de sua vez, aliás débil, foi encontrada a sabedoria.

      "Eis o ímpio que irrita o céu contra nossas cabeças!"

      Sangraram-no ali, à luz do Sol, com a própria arma.

 

      A VIOLÊNCIA contra o gendarme aliviou um pouco a tensão. Mas no íntimo cada um sentia-se presa singular das feras, da alcateia de lobos. Ainda não viera, mas àquele tempo estaria já confederada, talvez a caminho, talvez às portas mesmo, da cidade!

      Nem era só a ferocidade que se devia temer das alimárias. Se num encontro o lobo via o homem primeiro, quedava-se infeliz sem voz para gritar, sem força para correr - então era a morte horrível.

     Outras versões se difundiram. Nos relatos, agora o trágico, logo o cômico, quando não ambos, se confundiam para emocionar quantos da desgraça tinham conhecimento: quase sempre a cidade inteira.

     Era de esperar um movimento de defesa. Não tardou. Moça judia, bela e corajosa, fez-se a animadora de uma cruzada contra o inimigo. Pediu solidariedade, pediu amor, anunciou ardentemente a vitória:

      "A causa não é de ninguém, é de todos, meus irmãos!"

   De toda a cidade, de suas trinta e cinco mil almas, apenas dois rapazes se dispuseram e uma velha. Não desanimou a lutadora. Mas na hora de seguir para as muralhas à noite, só a velha apareceu - e a intrépida chorou de ódio:

    "Lobos! Lobos! Mais lobos que os outros!"

 

     FAMILIAS abastadas tratavam de emigrar, partindo com os bens móveis, relegando ao acaso as propriedades egoisticamente procurando salvar o benefício maior: a vida. A gente pobre, animada pelo exemplo dos grandes, começou a abandonar as terras, ao passo que dentro da própria cidade corporações inteiras de artesãos faltavam às oficinas.

    Então as ervas daninhas invadiram os campos, inutilizando as searas, envenenando os animais. Carcaças insepultas pelos caminhos emprestavam a atmosfera. Para desespero maior, foi o inverno rigorosíssimo aquele ano.

     E veio a fome. Desordens explodiram por toda a parte. Gente laboriosa, degradada em mendigos, aos bandos, entregava-se à pilhagem e ao saque. Velhos ódios demandavam-se em vinditas pessoais. Os que tentavam resistir eram transpassados.       E sobreveio a peste.

 

     SURGIU nestes dias, ninguém soube jamais de onde - talvez do silêncio antigo de uma mansarda, dos rochedos escarpados talvez - um homem de faces cavadas, e sereno. Não falava nas praças, nem era visto no tumulto. Buscava os caminhos retirados, convocando as pessoas para a paz de uma árvore ou junto às areias do mar, e lhes falava. Com palavras doces, quase uma queixa, e com persuasiva veemência - como um participante da desgraça, como alguém que sofre e compreende e perdoa - mostrava a loucura por onde trilhavam, o dilaceramento inócuo das paixões, e como em realidade estavam todos de acordo. Apelava para a razão, indicava as excelências da razão e a miséria do instinto não iluminado por ela.

     Algumas vezes reunia na planície aqueles que o seguiam e, de joelhos diante do azul, orava com eles:

 

      "Faze-me, Senhor, um instrumento de Tua paz,

       Onde há ódio, que eu leve amor.

       Onde há ofensa, que eu derrame perdão,

       Onde há discórdia, que eu logre unir.

       Onde há dúvida, que eu acenda a fé,

       Onde há desespero, que eu anuncie a esperança.

       Onde há tristeza, que eu conduza a alegria.

       Onde há trevas, que eu difunda a luz.

       Ó Mestre, que eu não procure ser consolado, mas consolar;

       que eu não busque ser compreendido, mas compreender;

       que eu não deseje ser amado, mas amar.

       Porque

       é dando que se recebe;

       esquecendo-se que a gente se encontra;

       perdoando, que se é perdoado;

       morrendo, que se ressuscita para a vida eterna."

 

     Em nome de quem erguia a sua voz, foi-lhe perguntado. Ele apenas afirmou que não era no seu, aliás não teria valor. E deu a entender que falava em nome de uma imemorial sabedoria. Simples era a mensagem. Esta era a sua mensagem: amor. Então alguns disseram que estava ali um novo Cristo, sobretudo os simples. Os doutores, que era Belzebu, com o manto do Anti-Cristo; atiçaram alguns contra ele, que o apedrejaram. Não tardou a ser intrigado com as autoridades, que se apressaram em difundir entre o vulgo o boato de que a peste coincidira com a revelação daquele falso profeta. E os mesmos que o seguiam o entregaram às autoridades, pedindo a sua morte.

 

  COMPREENDERAM as autoridades que nem todos os problemas o tempo solucionava. Agindo com pulso de ferro - zelo tardio no qual (opinião de muitos) a inércia do passado se traia - suspenderam todas as liberdades, aplicaram a lei-de-talião.

   Cabecilhas de bandos pilhadores foram sumariamente liquidados. Até inocentes pereceram. Que importava! Era preciso salvar a ordem pública a qualquer preço.

Implantou-se o terror.

     Então o capitão da guarda palaciana, espada gloriosa no sangue de doze batalhas, juntando-se a três ou quatro chefes subalternos, num golpe rápido depôs o governo.

    Na proclamação que dirigiu ao povo, além de anunciar que passara pelas armas todas as figuras daquele governo corrupto, traidor e inoperante, houvera por bem detectar que os haveres lhes fossem confiscados. Para serem distribuídos ao povo - por todos os títulos o verdadeiro dono deles! Quanto ao perigo, estava conjurado, o que valia dizer: seria organizado um troço de homens aguerridos para dar caça aos lobos nos fojos da montanha. Assim, voltasse cada cidadão à respectiva atividade, confiante e tranquilo.

     O povo aclamou o capitão como um herói.

 

     ORA, entre os mais ousados para a empresa um moço havia, da nobreza da terra, a quem o capitão da guarda palaciana, por natural amizade, queira com a um filho. Este, incumbido do extermínio dos lobos, arengou aos mais; que lhe ordenavam, tão mal vestidos e municiados? Sem dúvida, não se visava a acabar com os lobos, senão se desfazer deles próprios para tripudiar sobre os indefesos cidadãos. Por outro lado (perorou) tolos eram, tendo na mão aquela força, que era toda a força da cidade, não conquistarem o poder, ao invés de perseguir feras numa luta desigual.

    Foi decisivo o argumento. Dali mesmo tornaram o moço audaz à frente, tão expeditos no executar quanto no conceber.

     Feliz circunstância os ajudou; estavam os novos maiorais banqueteando-se pela vitória - Chacinaram-nos a todos.

      E num trabalho metódico deceparam-lhes as cabeças, que perduraram nas árvores da estrada principal, em ordem hierárquica; a cabeça do herói da véspera abria o fantástico cortejo.

     Mas estes se mal-avieram ao repartir dos despojos. Cada qual se julgava com direito à melhor parte. Exacerbados, não mais se entenderam e começaram a se devorar mutuamente, com lupina ferocidade.

       Os ratos tomaram conta da cidade.

 

     TAMBÉM os ratos não subsistiram. Asquerosa doença estourava-lhes os ventres, logo a terra foi adubada com esta matéria. E do monturo, na desolada planície, uma flor nascia de pétalas em cálice, que durava a eternidade de um amanhecer...

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