Xavier Placer
S O N H O II
E disseram entre si: Vinde, façamos para nós uma cidade, e uma torre, cujo cume chegue até ao céu...
Gênesis, XI, 4.
QUALQUER DIA - e eu vos afirmo que assim foi - navegando o mar oceano, me encontrei sob um céu desconhecido, em terra estranha.
Difícil elemento é a água - mas compensara os trabalhos da viagem e o imprevisto da descoberta. Então, esqueci icebergs e filibusteiros, monstros marinhos e ventos enfuriados, e de novo me exultou o coração à alegria da aventura.
Formidável país Babélicos edifícios arremessavam para o espaço as suas massas esmagadoras, dispostos como num tabuleiro de perdidas proporções. Torres metálicas; pontes de aço; monumentos; chaminés e chaminés e chaminés vomitavam colunas de fumo contra o céu, numa demonstração de grandeza e poder nunca vistos. Nenhum vestígio de natureza! Tudo obra do engenho humano, da mão humana, da vontade humana.
Multidão azafamada, composta dos mais díspares indivíduos, agitava-se nas vias, largas e de longas perspectivas, lembrando uma colmeia, um formigueiro - colmeia e formigueiro humanos. Que vitalidade! Que exuberância de vitalidade! Mundo moderno, mundo primitivo!
Experimentei falar a um desses indivíduos. Mas passavam tão rápidos, de tão noturnos rostos e concentrados, que não tinham tempo para um gesto, para um olhar de gratuita fraternidade. Por mim mesmo entendi; não se tratava de uma data festiva, mas um dia comum, e aquele tumulto era a atividade normal de trabalho no assombroso pais.
Num parque, sob árvores prisioneiras de cartazes, falava um homem a interessada multidão. Falava, e dizia:
"– Eu predico o Homem presente, a Vida presente. Eis a Eternidade. Cada ser é uma reserva potencial de energia. Cada ser é um dínamo. Ama o Sol e odeia a noite, ó Homem Forte. A Ação é a deusa fecunda! Esta deve ser a tua fé e nenhuma outra; a Ação! Verdade é que provou ser útil - eis tudo. Perguntam-me alguns por Deus. Deus é um ser finito. É tu mesmo. O mistério? Causas não identificadas ainda pela tua Mente. Oh, não acreditem, eu lhes conjuro, na palavra dos sábios. Que são eles? Velhas feiticeiras enredadas em teias de aranha. Vejam como estão cheios de medo. Só o Maior Número está certo, só a sabedoria do Maior Número é verdadeira. A Morte! Que querem os que me interrogam sobre a Morte? Eu lhes respondo simplesmente: Morte não há. Eu predico o Homem presente a Vida presente. Eis a Eternidade..."
E prosseguia o homem do parque, sob as árvores prisioneiras de cartazes, prosseguia na sua estertorante eloquência. Era uma criatura que tinha muita certeza. Isso mostrava-se na pletórica figura dele - feliz como um animal no cio solto em livre campina. Apenas, nada tinha de sábio, nem de apóstolo, antes lembrava um titeriteiro. E impressionante - talvez só para quem não estava habituado ao espetáculo - toda aquela gente o ouvia como quem põe a juro uma soma que será centuplicada, como quem faz um bom negócio. Nem outra seria a razão de tanto interesse.
Sobreveio a noite e o homem do parque clamava ainda. Cuidei que a noite trouxesse um pouco de repouso àquela gente desvairada, enlouquecida, frenesiada. Mas naquela nação desconhecia-se o repouso, as delícias do sono - ali não se dormia. A vida continuava, buscando agora o prazer, noite dentro. Noite a dentro, à luz dos focos elétricos, que empalideciam as estrelas.
Misturei-me ao torvelinho humano. E meu coração se confrangeu. Aquele seria o país do Progresso, não o era da civilização. E a Felicidade! Ocupados em sacrificar ao Bezerro de Ouro, esqueciam de viver. Ali, a alegria das faces não nascia do coração. No coração, o verme tédio corroía o dom da vida, e destilava um veneno letal. Quando riam, aquelas máscaras, era num esgar histérico, animalesco gargalhar delatando trágico desespero em silêncio!
Evadindo-me da insana realidade, acolhi-me à sombra da mulher, da mulher, filha da Terra, descanso do guerreiro, e amiga. Mas também elas haviam sido picadas pela tarântula. Trajavam à masculina, alimentavam-se de licores fortes, intoxicavam-se de tabaco, tinham vozes rouquenhas, gestos grotescos e modos de pensar ainda mais grotescos. Não; não eram mulheres, antes um sexo neutro, que se dedicava com entusiasmo a misteres prosaicos. Criaturas sem mistério, que jamais inspirariam vontade de morrer por elas, Dedicações, sublimes loucuras - nenhuma ilusão de amor. A própria maternidade era-lhes algo importuno e desagradável; esta "função" estava relegada a criaturas obscuras, sem maior importância.
Ao contrário, a máquina era ali a divindade adorada. Quando se referiam a seus engenhos inclinavam-se respeitosamente, à semelhança dos hebreus ao pronunciar o nome de Jeová. E com seus engenhos desvirginavam o seio da terra, desviavam o curso dos rios, nivelavam altíssimas montanhas, desciam ao fundo azul dos mares, devassavam as nuvens, punham-se em comunicação com mundos estelares, proporcionavam-se confortos inauditos. Tinham linhas belíssimas as máquinas, que maravilha, mas, de tão perfeitas, de tão perfeitas explodiam sem explicação, dizimando-os em massa como a insetos. O deus-máquina, ao invés de libertar, tiranizava.
Não silenciavam no esquecimento imediato estas tragédias. Todos deviam conhecer a extensão das catástrofes, frenesiar-se com o que tinham de horrivelmente sinistro ou caricato. Para isso abatiam-se florestas inteiras. Com o ouro-branco de sua seiva fabricavam-se farrapos onde cada drama exaustivamente era contado. E como não bastasse, juntava-se o relato - pois a criminalidade era elevadíssima - de estupros, adultérios, assaltos à mão armada, nefandas corrupções, suicídios.
Aparentemente o chão era sólido. E a batalha era dos brutais, dos violentos, dos corações de pedra. Dentro da noite, em contraste com o feérico esplendor, vi porém braços estenderem-se suplicantes. Os deserdados do monstruoso banquete... Não tinham uma voz que por eles clamasse? Também, também ali fermentava o ódio nos subterrâneos. E no lagar dos atormentados corações secreta esperança vingadora ardia na certeza de assistir na hora próxima ao esboroar daquelas muralhas.
NA OBSCURIDADE tive um encontro com Satã. Não era a vitoriosa figura da legenda. Tão assombrado me senti, de sua presença não, mas de seu estado, que involuntariamente meus lábios murmuraram: "A que desceste, tu, Lúcifer, o Anjo mais luminoso entre os Anjos de Deus. Há decadências que não se deviam conhecer nunca. Antes a morte".
Ele. – Ah, amigo, a solidão é uma coisa terrível. Sabe o que é a solidão? Ah, ah, ah... Como há-de-saber o que é a solidão! Trabalha, alimenta-se, ama, odeia - vive. Quando a solidão o assalta, vai dormir, não é assim?
Apesar de tudo, sempre o mesmo: suas feições se iluminaram de uma alegria perversa.
Ele. – Estou só, Absolutamente só, embora rodeado de uma legião de servidores. É a pior solidão, esta, em meio à turba e do alto do supremo poder. Nunca, nunca um humano poderá medir a força deste trágico. Como pesa!
Então me abriu o tesouro de sua infernal sabedoria. Nem no Mal, ninguém mais acreditava no Mal pelo Mal. Tinha uma concepção aristocrática do Mal, mas os elementos a trabalhar não resistiam à grandeza de seu sonho. Que matéria ordinário o homem! Não era grande para o Bem, nem para o Mal. E era por isso que o outro (referia-se a Deus), havia muito entregara o mundo à própria sorte, o que valia dizer, a ele Satã. Era o senhor absoluto. O Senhor, que ilusão! fora derrotado, confessava sem orgulho; fracassara. Transmutar todos os valores, transformar a face da Terra - belo sonho, que enterrara.
Ele. – Depois de amargar, decepção sobre decepção, coloquei minha esperança num tipo representativo da civilização: o burguês moderno. Ali estava o homem tal como o imaginava, na dignidade de sua espécie: cupidez, tirania, astúcia, má-fé, dolo e orgulho. Matéria para uma obra-prima! Este portanto, eu o atiraria à face do inimigo. Mas, ai do meu titã, penetrando-o de perto, compreendi o meu erro. O meu titã não era uma montanha, era uma planície. Em suma, um poltrão dos mais vulgares, execrável. Quantas vezes não surpreendi em suas faces congestionadas o sentimento da falta de segurança, a incerteza do dia de amanhã, o medo, a angústia, o tédio. Numa palavra, o sofrimento. Neste dia, desprezei-o mortalmente. E voltei-me para seu escravo. Quem sabe não encontraria neste o metal para moldar o meu tipo de humanidade? Não era a alma do pária das grandes cidades, revoltado contra as condições de existência, uma cisterna de ódio, uma chama sanguinária de vingança, ressentimento, cegueira? Estimulei as suas qualidades. Mas também um dia descobri que o meu novo herói era tudo isso, animado porém pelo elan humanitário de forjar um mundo de justiça e de amor, numa idade de ouro. Veja: o essencial eu não atingia nunca. Porque a minha vitória só a alcançaria quando alcançasse este pouco: a aceitação da consciência do Mal.
Lançou-me um olhar, e baixo, em suave tom confidencial:
Ele. – O homem é uma coisa imprestável. É tão ruim coisa, que acabou me contaminando com a sua fraqueza. A mim! E aqui está a outra face da minha tragédia. Nauseado, odiei a Humanidade. Mas, de cada novo desengano, imbui-me de compaixão por esse verme, esse trapo, esse zero. Ah, é realmente de comover! Que solidão de homem para homem! Se tentam aproximar-se, que grosseira desproporção entre sentimento e realidade. Se se voltam para a Natureza, que outra coisa deparam aí senão a sua rígida impassibilidade? E mais a Necessidade e os Limites - exceto diante da Dor - e a perplexidade perante o Desconhecido. Por último, aceito como um bem desesperado, o absurdo doloroso da Morte. Francamente , não se faz preciso ser um prodígio de Bondade; o homem merecia destino melhor. Ouça, ouça o meu segredo: Eu agora amo o homem.
EU AGORA AMO O HOMEM - disse, e sumiu com a claridade da aurora, que acordava. Até ele, até Satã, o eterno espírito do Mal, o anjo rebelado, o mortal inimigo, o Tentador, Satã, até ele, compadecido da humana criatura! Eu agora amo o homem. Oh suprema maldição! Que faço aqui, que ainda espero?
Amanhecia. Que faço aqui? Neste vasto mundo não há lugar para os humildes, para os pequenos, para os obscuros nem para os mais obscuros e humilde de todos, os poetas, os visionários, os contemplativos; a singularidade desta raça é uma contradição, e mais que uma contradição, ameaça e ofensa. Sumariamente foram eliminados para o perfeito funcionamento da engrenagem. Por cima de tudo paira uma necessidade de nivelamento que impõe o sacrifício da exceção. E a lei cumpre-se inexorável. Aqui é o país do homem-músculo, do homem-máquina, do homem-rebanho!
Tantos séculos de experiência, e os primeiros não saberem viver debaixo do Sol! Horrorizado desta grandeza monstruosa, deste inferno de pó e fumo, ruído, velocidade, ação, minha alma sentiu-se num cárcere, ansiou por uma nesga de céu e um pouco de ar. Que faço ainda aqui? Logo deixando para trás avenidas asfaltadas e arranha-céus, torres metálicas e pontes de aço: monumentos, máquinas, chaminés; anúncios luminosos e almas escuras, refugiei-me no meu frágil batel. Livre, salvo! E a plenos pulmões bebi o ar infinito do mar, do mar oceano - espelho do poder e da grandeza de Deus.
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