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S O N H O   I
   E meteu o anjo a sua foice aguda à terra, e vindimou a vinha da terra, e lançou a vindima no grande lagar da ira de Deus. 
                    Apocalipse, XIV, 19.

     Havia uma data milenar no pórtico do mosteiro, venerável e acolhedor. Curvei os joelhos sobre a terra, beijei-a, e meus lábios fremiam em palavras antes sentidas que articuladas:

          "Ó Tu, a quem os simples chamam criador do céu e da terra; Tu, que para os sábios deste mundo não existes; e que para mim, que não sou nem simples nem sábio, és algumas vezes, sim o criador da terra e do céu; outras nada; outras o meu espanto diante das criaturas; a desesperança diante das perguntas; o mistério - ó dor - ; a minha contingência sedenta de eternidade, o véu da noite; a face amada - oh, por que tão bela? -; o rugido do mar; o silêncio; ó Tu, essa coisa que entrevejo e logo se esvai; verbo dentro de mim sem forma; sentimento dentro de mim sem forma; aspiração, anelo; Amor; Tu que te revelas por enigmas (se eles são Tu); Providência que busco na aflição e desdenho nas horas felizes; que esqueço, torno a querer e blasfemo; ó Tu (se és Tu), eis-me de coração aberto, aqui, como um menino se é preciso ser simples como um menino para Te encontrar - mas dá um sinal da Tua existência; desce da Tua magnitude; sai da Tua esquivança; fala claramente, que sou burríssimo, só entendo palavras óbvias; só vejo com olhos de carne; só escuto com ouvidos de carne; ó Tu - Deus - e seria tão simples."

       Já entrava aquela casa, mas um monge de porte ascético, fisionomia de granito, atravessou-se em minha frente, autoritariamente me impediu o acesso, querendo saber que era eu. Com humildade, declinei meu nome. 
       Ele. – Então  foste tu quem o matou! e os olhos do sombrio guardião eram ardentes, penetrantes.
         Fitei-o sem entender.
        Ele. – Imaginas-me um louco.  Mas a mim, bem me importam a mim os juízos dos homens!
       E isto dizendo, deu uma gargalhada de criatura louca - loucura fria, consciente, satânica - sem desfitar de mim o desvairado par de olhos.
        Ele. – Vês?  Tenho-te em minhas mãos;  sou senhor  do teu segredo. Mas não te aflijas. Não foste o primeiro nem serás o último. Não é a descendência de Abraão que é inumerável coma a areia do mar, mas a de Caim. Então, voltas ao local do crime?

       Eu. – Irmão, falei, armado de serena coragem e erguendo para ele os braços - deixa-me entrar. Certo, há um equívoco. Eu quero apenas um lugar nesta casa, obscuro lugar nesta casa de santas criaturas, onde repouse o aflito coração.

       Ele. – Um lugar...  nesta casa de santas criaturas...  onde  repouse o aflito coração. Oh. oh, oh, nada me obriga a que te faça tal acolhimento!

         Eu. – A caridade te obriga. A caridade! Deixa-me entrar.            

        Ele. – A caridade! Eis, este vermezinho a me dar lições de caridade. A mim, a mim!        

        Eu. – Irmão, deixai-me entrar,  eu te suplico. Deus,  o amor  infinito, será testemunha do teu gesto fraterno.

         Ele. – Deus, Mas se Deus é morto!

       Deus é morto". Compreendia agora. Estava ali, naquela confissão, a tragédia do homem. Claramente era um daqueles de quem estava escrito no Livro que não lhes seria dado perseverar até o fim. Levantei para a criatura os olhos; o espetáculo daquela face obrigou-me a baixá-los. Infinita piedade me oprimia. Esquecido um instante de mim, da minha dor, chorei por não lhe poder valer. Senhor, como éramos miseráveis, como éramos finitos e frágeis! Ver a dor e nada poder!  

    Como se houvera compreendido o que em mim se passara, vi o semblante do sombrio guardião tornar-se menos áspero.

        Ele. – Então dize-me, Deus ainda existe? murmurou quase suplicante.

        Eu. – Sim, eu assim o creio.

        Ele. – Prova-mo, que eu crerei como tu.

       Eu. – Não o saberia, irmão. Não encontro palavras. Mas creio que Ele existe. Quero dizer, sinto neste instante que Ele tem que existir - eis tudo.

        Vi as feições de granito de novo se contraírem.

        Ele. – Entendo  a  tua  fé.  És daqueles   que exclamam:   Que seria de nós se não fora assim! És tão desgraçado quanto eu.

        E o sombrio guardião cedeu, com piedoso desprezo, isso eu senti.

        Ele. – Vem comigo.

 

      RAIVOSAMENTE, a pesada porta rodou nos gonzos, como se minha entrada ali fora uma profanação. O claustro era silente; lúgubres as arcadas, gretadas de rachaduras, e tenaz lepra a corroer as suas negras pedras. E o mesmo jardim ao centro, com três ou quatro arbustos, areia e cascalho, habitados de magros bancos de ferro , agravava o desolado aspecto de ruína... Evitando pisar nas sepulturas rasas, com suas lápides apagadas, como ignorados na memória dos vivos os mortos antigos que guardavam, eu o seguia em silêncio. Fechado em si, prosseguia impassível, tal um ser em quem se estancaram as fontes de humanidade, qualquer possibilidade de afeição e ternura, e se reduz a um autômato. Entretanto meu opresso coração, naquela hora única, meu opresso coração anelava por um companheiro. "Como somos sós! Ai de nós, da irremediável solidão de nossas almas, ainda nas grandes dores".

       Na  igreja,  junto  ao  altar  desnudo, crepitava  uma  chama  rubra. Sombras trêmulas se recortavam nos reposteiros, que solenes se erguiam verticalmente. Cabeças curvadas, os monges ajoelhavam-se em círculos. Ali estavam elas, as criaturas que eu buscava; ali na comunhão fraternal daqueles santos, havia minha alma de encontrar a paz. Enfim! "Senhor, louvado sejas, na abundância da tua misericórdia!"

        Ele. - Entra, não o quiseste? Entra e contempla. 

       O terror imobilizou-me. Estava meu espírito, tenso para tudo suportar, mas o espetáculo era demasiado violento para a santidade do lugar. Caído no tapete, na fisionomia a trágica expressão do derradeiro instante, braços abandonados, a figura de um monge velho, banhado em sangue, assombrava. Num esforço sobre humano, voltei-me para aquele que me guiara. Entendeu-me sem palavras.

       Ele. – Dorme na morte. Com as suas próprias mãos a procurou. 
       Eu. – Mas nem aqui, nem aqui Senhor!
       Desvencilhou-se de mim com rispidez.
       Ele. – E este, era o mais puro, o mais perfeito da comunidade.
       De novo lhe apertei as mãos.
       Eu. – Retirem ao menos o condenado. Não prolonguem isto.
       Imperturbável, aquela  face  de  granito  dirigiu-se para o altar. Tomou um missal de fechos dourados, abriu-o, e voltando-se para a comunidade, fez um ruído seco com a palma das mãos. Qual sonâmbulos despertando, os monges ergueram as cabeças. 
      Ele. – Rezemos o Dies irae por esse que jaz no chão. Se em vida foi o mais perfeito, demonstrou por fim que era também o mais sábio; em boa hora teve a coragem de ir ao encontro da morte, a Consolatrix afflictorum.

      Nenhum  monge  se  moveu. Mas entoando as primeiras palavras do hino:
       Dies irae, dies illa.
todos o acompanharam, num tom monótono e plangente:     

   
       Solvet saeclum in favilla:
       Teste David cum Sibylla..
.


     Ajoelhei-me, cobrindo o rosto, sentindo invadir-me espiritual serenidade. Eis o que eu procurava. Compreendi-as, porque as via realizadas, as sagradas palavras tantas vezes conhecidas: "O reino de Deus é paz e gozo no Espírito Santo e está dentro de vós mesmos". Então toda a minha vida revelou-se um caos, erro e loucura, luta incruenta e cega em meio a universal cegueira. Formas vazias de ser, vi-as boiar à superfície de um mar estagnado, em via de decomposição... Já agora, como se não se tratara de mim, eu meditava. Por que fora assim? Tinha sido um mal?  Mas se eles, erros e loucuras, e só eles, haviam preparado o instante perfeito, de identificação comigo mesmo, em que agora me rejubilava? Certo, não me seria dado alcançar as razões essenciais de tudo, mas nem por isso devia me perturbar. Não; não fora um mal. Havia sido necessário que assim fosse - eis tudo. E Ele, o Senhor de todos os destinos, cuja mão abatera Job e quisera de novo erguê-lo, ali me tinha a seus pés, e para sempre, para sempre, para sempre. Não era o reconhecimento da própria miséria o princípio da ressureição?
      Cantavam os monges; mas chegando àquelas palavras do texto:
       
             Quid sum miser tunc dicturus?

Quem patronum rogatus?

Cum vix justus sit securus...


ouviram-se longos suspiros, como de torturas e angústias concentradas, que se libertassem. Tão doloroso, que a todos emudeceu. Houve uma consulta de olhares. Sim, era do morto, era do coração do suicida que partira aquilo? Então ninguém perguntou o que fazer; em confusão e atropelo, ansiedade e pavor, precipitamo-nos para fora do mosteiro.

       

   FORA, o espetáculo era além do que poderia alcançar a humana inteligência. Dir-se-ia que a Natureza havia enlouquecido, tal a fúria e a desordem e a raiva com que os elementos se despedaçavam. O Sol, a fonte da vida, apagara-se no firmamento; tudo trevas amortalhando o universo. E enquanto animais e coisas eram arrebatados indistintamente, só o homem era poupado.

     Por que a singular exceção? Que destino trágico estaria reservado ao "rei da Criação"?

      Não tardou que também os homens fossem arrebatados na voragem destruidora. "Eis, intui," eis que tudo se torna claro. Cumprem-se as palavras, é a realização do Apocalipse! Chegado o princípio das dores, que meu coração pressentia. Àquele que tem ser-lhe-á dado e àquele que não tem, o pouco que tiver, ser-lhe-á tirado. É a lei da divina justiça, que julgará vivos e mortos."

       Tão terrível se me afigurou esta nova realidade, que de todo me olvidei a mim mesmo. Naquela circunstância extrema minha dor era a dor de todos os semelhantes; e o sentimento de fraternidade tornava-se uma verdade viva, profunda, única, a única realidade. "Ai de nós, Senhor, ai de nós!" Não clamava em palavras, pois os pensamentos se sucediam numa rapidez que elas não poderiam fixá-los, mas no fundo do ser, na mais eloquente das linguagens, a do sentimento "Senhor, deixa-nos voltar! Houve um equívoco. O imenso mar. Acreditávamos ver a Tua imagem no espelho de suas águas, mas elas eram turvas, as águas do imenso mar. Senhor, deixa-nos voltar e recomeçar!"
      Que era? De onde vinha? O alvinitente resplendor cresceu; crescendo foi e ascendendo. Num instante tomou o espaço infinito. E em meio ao aniquilamento da Natureza atroou os ares uma trombeta. Logo se fez um enorme silêncio. E eis que o Supremo Juiz, o Senhor da Vida e da Morte, a Trindade Santíssima, surgiu entre as nuvens do céu, rodeado do exército de seus Anjos e Potestades, Arcanjos e Serafins, Tronos e Dominações, todo esplendor de onipotência e justiça, na plenitude de sua glória.
     Então, exatamente  como  há milênios  advertem  as  mensagens esquecidas pelos homens, abrem-se os túmulos, e os mortos das gerações passadas, juntando-se aos da geração presente, apressam-se todos em comparecer. Onde os eleitos? Onde os corpos gloriosos que os distinguiriam dos réprobos? Tragédia sem nome! Clamando, aos gritos lancinantes podem uns que montes e penhascos caiam sobre eles e os esmaguem;  laceram-se outros os corpos, amaldiçoando em blasfêmias o dia em que nasceram; outros suplicam que o Inferno os possua e que seja a memória deles para sempre esquecida; outros - e estes legião - choram e tremem, esmagados pela certeza do horror que os espera. 

       Do alto, terrível  no augusto tribunal, Deus-Pai alçou a voz sobre o desesperado mar humano. Sua palavra, candente de cólera, ecoou como um látego:
         "Não vos conheço! Não vos conheço!"
       E, inapelável na sua sede de justiça, majestosamente apontou para Deus-Filho, que à destra, ostenta os sinais do sacrifício cruento para a redenção da humanidade.
     "Não quisestes  ser  meus filhos  no Tempo, desconheço-vos  na Eternidade. Afastai-vos de mim, ide para a geena eterna, onde habita o Pai da mentira, a que me preferistes!"


       ENTÃO o Demônio, o eterno Espírito do mal, olhando de frente a face irada de Deus, desatou numa gargalhada, porque a finalidade maior da Criação havia sido frustrada, porque a ele cabia a melhor parte...

 

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