top of page
Ú L T I M O    S O N H O 
    Eu  te ouvi por ouvido de orelha; mas agora te vê o meu olho.
    Por isso me repreendo a mim mesmo, e faço penitência no pó e na cinza. 
    (Job, XLII, 5-6, respondendo por fim com sabedoria ao Senhor, que lhe falava do meio de um redemoinho)

       SINTO QUE O FARDO dos dias e o desgosto da multidão, ultrapassam em mim o limite  suportável. E tomo uma diligência, parto para Val de Palmas. Val de Palmas, o país que não se parece a nenhum outro, cujos símbolos são a água e a serpente, o reino beijado pela luz, propício à floração do que têm as criaturas de mais íntimo, do singular, do absoluto de cada um. Libertos do medo, a alegria é a marca das palavras e ações. Nem escravos, nem senhores. Severos para consigo mesmo, compreensivos para com os outros, esforça-se cada qual menos por receber que dar, certo de que mais enriquece dando que entesourando. E assim ali o sono é tranquilo, porque ninguém tem ouro enterrado que venham à noite ladrões escavar e roubar. Verdade que a terra não é grande; cabem todos nela, porem, e o Sol amadurece as searas, que produzem em abundância. Ali não está morto o sentimento do mais alto; ao contrário, é vivíssimo, mas isto não oblitera o profundo sentido da terra; os lábios dos apóstolos falam de Amor, mas trazem-no no coração. E todos são dignos da vida, porque a amam. Em verdade jamais devera ter saído de lá. Ninho tépido de minha infância e adolescência, no Vale das Palmeiras, a terra de onde se avista o Sol primeiro - ali devera ter passado os dias de minha existência. Como acontece a toda gente, a mocidade, com seus enganos, tangeu-me do ninho natal e por largo tempo - enquanto durou a sedução pela Cidade Grande - Val de Palmas, o país que não se parece a nenhum outro, tornou-se uma ilha apagada num oceano de lembranças o que eu tinha de melhor sem o saber. Por último, quando foi a Cidade perdendo a auréola, quando o sofrimento me visitou - e mais que o sofrimento, a consciência dele - Val de Palmas, a terra onde se avista o Sol primeiro, começou a emergir do caos. Emergiu, e reconheço-a agora maior e mais bela do que a viram meus olhos juvenis. Volto um pouco tarde, os primeiros fios alvejam-me nas têmporas, mas não importa, ei-la, a minha Atlântida, descobri-a, e é tudo! Nem direi que jamais devera ter saído de lá. Por que sentimentalizar-me? Tudo está certo, esta serenidade desconhecida que aos poucos se apodera do meu eu de volta o confirma. E esta serenidade eu sei que ela não mente. Não há paz que não seja conquistada com lágrimas e vigílias, com o sangue da nossa vida, a paz verdadeira. É a dura lei do amanhecer do espírito. Os que perecem não têm outro destino. Quase inumano, mas assim é. É preciso deixar o doce carinho animal do círculo primeiro, perder-se nas tentações da Cidade Grande, e errar, e acertar, e pecar, e pecar ainda sete vezes, para empreender a aventura de torna-viagem. Tentei-a um dia, há muitos anos, não estava maduro, voltei com a desolação na alma... Vejo-me homem de trinta anos, naquele dia antigo. Vou rever o céu de minha infância e adolescência. Desembarco. Oh dor, como tudo está mudado! Brilha o Sol, faz calor. As coisas se exibem cruamente - nuas, físicas, reais. São as coisas. Tudo sem mistério, agressivo. Um desgosto grande me transborda do coração. Detenho-me para captar a consciência do que acontece. Não, não é hostil este lugar, familiar outrora. Não é hostil, mas diferente. Tudo mudou, tudo. Como um estrangeiro. Como um estrangeiro na terra natal, depois da larga ausência. A tatear, diligenciando decifrar nos muros uma inscrição. O tempo deliu os caracteres, impossível recompor a legenda. Que teimo em fazer aqui? Vamos, vamos, forasteiro na própria pátria, confessa a derrota. Resigna-te a aceitar que tudo está morto, perdido. Assim falou meu coração. E esta verdade me melancolizou naqueles dias como se tivera sido defraudado para sempre de um supremo bem. Como se uma parte de mim próprio, porção essencial houvera sido cortada, aniquilado pelo arbítrio de uma divindade perversa. Sem nenhum sentido. Para cumprimento de uma lei absurda e irônica. E eu ali, sozinho, no mundo vazio, de alma vazia.... Como estava longe da profundidade do meu próprio ser... Meus olhos só discerniam as superfícies, meus pobres olhos de antigamente. Hoje não; nesta hora não. Devassam mundos, viajam nas estrelas - e eu compreendo. Ah, como compreendo! Oh solene momento, manhã do espírito em estado de graça! Valeu a pena. Eu, que tantas vezes abri os lábios para amaldiçoar, quero confessar bem alto dentro de mim: mea culpa, mea culpa, mea culpa. Um dia tomei a parte dos bens que me cabiam na herança paterna, fui dissipá-los em terra estranha. Meus dias de loucura! Depois vi-me coberto de farrapos, alimentei-me de raízes, chorei. Por isto valeu a pena - eu conheci a dor.

 

      PARTO ABRUPTAMENTE. É esta a minha hora, a hora única. Malgastei tantos dons, não me vejo de mão vazias; quanto desperdicei me volta centuplicado. Eis que me encontro - e me reconheço. O fruto dourado do Tempo! Esta visão explode diante dos meus olhos, folha madura que desprende do galho. Pela vez primeira me invade o sentimento de que tenho um passado, sou um ser vivido. Aqui está. Aqui está, nitidamente, um novo sentido. E até esta hora insuspeitado! O mundo cresce, mas cresce dentro de mim, alarga-se em novas dimensões e valor. Abatem-se muralhas, irrompe, violento, indomável um enriquecimento de espiritualidade, de profundidade autêntica. Nada morre. Isto sou eu! Por que só agora o compreendo? Compreendo-o a tempo. O que foi, não importa. Este é o momento inaugural. Transcendente momento. Belo demais. Sentimento que não se deixa pensar, não há verbo que o possa dizer. Como a revelação de um alto amor. Mas no amor há a perturbação. Aqui só a intensidade. Oh infinito! Quase doloroso. Belo demais. Devia me calar, eu devia me calar- maravilhosa florada. Tumulto de estranha serenidade este, inundando os subterrâneos... O fruto dourado do Tempo. Isto sou eu! Vitória sobre o Tempo efêmero, que ninguém me arrebatará, em todos os meus dias. Pratiquei tantos gestos, palavras. O desesperado afã de não morrer de todo, de não morrer nunca! Por que em meu coração esta loucura? Tudo o que eu fui, se tiver de se perder, que se perca. O frêmito, o momento-de-vida-e-nunca-mais, este não se perderá, jamais. Subsiste comigo no eterno-presente, meu clima. Oh vida! Oh Sonho! Oh Mistério dentro de nós mesmos a que chamamos Deus! Vem, Solidão, que eu quero amar-te. E tu, a temida, tu, Morte, aproxima-te, que te chamarei irmã. Oh Silêncio! Eis-me de regresso. Eis-me de regresso, ó Deus, ó céus, ó mar, ó criaturas. E tu, minha alma rejubila-te, porque se o fazes na hora noturna em que outros se sentam - o imenso tédio - diante de uma dourada garrafa a gargalhar; na hora em que muitos se evadem devorados de fel e em que não poucos, sem esperança voltam revólveres contra o peito; tu, ao contrário, não acusas nem te acusas - apenas te retiras. Nem mesmo com ironia, e feliz, feliz como um ser identificado - enfim! - consigo mesmo.

 

     LARGO É O CAMINHO, grave a hora. Avança a diligência na estrada real... Posso entoar meu cântico de libertação. Conheci, amor, também o teu império. Ei-la, caminhando para mim seu corpo gentil de adolescente, pleno de secretos estremecimentos e promessas. Como se cristalizaram as promessas? Que mulher desabrochou das formas maturescentes da sua puberdade. Era realmente bela. Tinha consciência disso, como não tê-la, se mais eloquente que os espelhos, tantas faces se voltavam para ela, tantos lábios se abriam para tecer-lhe a homenagem de um comentário quando passava atenta ou distraída? E, sábia, não houvera provado do fruto proibido, não fora profundamente mulher; multiplicava as graças da natureza com os requintes da moda e da maquillage. Que força convincente se irradia do seu auto-retrato! Está naquele "fundo" , tão lírico na sua totalidade evocativa de mar à hora meridiana em dia claro, cuja secreta palpitação mal se contém nos limites materiais da moldura; está sobretudo no halo indefinível que tão poucos tiveram olhos para ver e que eu, íntimo de sua alma, nele surpreendo flagrantemente. Como teria ido longe, ela que começou tão bem na arte de sua eleição! Não o quis a Vida. Vida, Destino, Providência... Quanta palavra para esconder a essência de uma realidade que não alcançamos. A noite em que nos vimos pela derradeira vez. Ái, ignoramos sempre, e isto é o que dói, Virgínia. Virgínia, ó Virgínia, a tua ausência deste mundo desperta-me um tumulto de perguntas. Acaso deverão ficar sem respostas? Que mensagem vieste trazer? Que queria dizer o milagre da tua beleza? E a tua partida, a tua tão breve partida, Virgínia? Jamais houve um amor igual ao nosso. Tão belo, que eu às vezes imagino foi um sonho. Mal de mim. Orgulhoso, eu cuidava que a Bem-Amada fosse eterna. Mal de mim, A Bem-Amada é frágil, frágil. E agora aquela desfaz-se na terra que um dia adorei... Mas não; este amor me acompanha e se confunde comigo, e é eu, e desabrocha em piedade - por mim, por todos, por tudo. Virgínia, Virgínia, Virgínia.

 

      AVANÇA A DILIGÊNCIA NA ESTRADA REAL... De ambos os lados é o campo, a planície ondulada onde apontam todos os matizes do verde , avermelhado aqui por um corte vertical na terra, ali por um telhado novo. O céu alto é anil; esvoaçam rebanhos de nuvens sobre as longes encostas. Cheiro de terra molhada, dilui-se em erva rebrotada, volta, de novo se perde ou se confunde. Agora é o rio, a sua água barrenta de erosões, viajando. Nenhum barco. Beleza nenhuma. Apenas, às margens, as trombetas se debruçam brancas, e se debruçam num flagrante desejo de tocar a água, que não para, que vai para o mar. Ficam andorinhas, em ordem de batalha, pelos cabos de alta tensão. E anúncios que se agigantam à medida que a diligência se aproxima, sorrindo uma face gentil, um lubrificante, qualquer inutilidade, mas também atirando uma palavra sonora. Lá para trás, cada vez mais distante, ficou a cidade dos homens. Cada vez mais distante, com seus arranha-céus, seu orgulho, seus autos, e o tédio, o tédio, o tédio devorador... Avança a diligência na estrada real deixando atrás uma nuvem de pó. Espessa nuvem. Não ajuizem pelo que veem; os olhos, o mais das vezes, os olhos mentem. Nem cuidem que é para estabelecer uma cortina com os que ficam, para erguer uma muralha. É a natural consequência do atrito rápido das rodas e das patas contra o solo. Apesar da náusea ainda sei bendizer. E sei bendizer. Que seria pecado empeçonhar de ódio a significação deste minuto. Nem a grande presença o permitiria. De longe, lá de longe, ele se faz anunciar pelos moinhos - os moinhos de vento, irmãos civilizados daqueles que o Quixote acometeu de lança em riste - ei-los, eretos, cinzentos, dálias enormes semeadas na planície. Mais belas ainda são as dunas de sal faiscando a sua alvura de neve, retalho de paisagem polar inserida no trópico. A água tem nestas reentrâncias do litoral serenidade de lago. O vento açoita o rosto, que vontade de gritar. Oh espelho da face de Deus. oh mar poderoso! Então não haviam pressentido a solene presença? Então Este marulhar incessante, essa música em surdina, não lhes dizia nada? Ou imaginavam o canto de alguma aeronave que cega sobrevoasse a pista? Agora, à direita, nada há digno de nota, mas à esquerda fica o mar. Considerai: o velho lobo de vagas tormentosas não, mas o tranquilo mar que se espraia na areia e em alguns recantos banha isolados arbustos. Fica uma salina para trás, surge outra... Passa esta e outras se sucedem com as suas dálias, as suas neves e os seus trabalhadores do sal! Há o horizonte, lá longe, onde a luz acorda em novo dia e à tarde as nuvens armam desvairadas fantasias. A linha do horizonte, onde transatlânticos posam um instante, orgulhosos, inacessíveis. Também há pássaros marinhos solitários e em bando. Há muita coisa de ver; a asa branca de um veleiro, por exemplo, porfiando com as ondas, ao largo. Para os trabalhadores do sal, para estes é que há apenas uma tarefa a executar, rude tarefa que se repete monotonamente cada sol: puxar sal dos cristalizadores. Não, não é fácil sonhar sob as abas largas de um chapéu de palha. Sabei, irmãos, que estou convosco, não com o vosso ódio, convosco. Com este mar fraternizo. Não me agradaria se viesse arrebentar em vagas violentas, o oceano terrível das epopéias ou a moderna estrada líquida das cidades flutuantes, escoltadas por cardume de golfinhos, grávidas de civilização, habitadas de ociosos, beldades, ladrões internacionais e algum morto famoso. É que daquele outro mar guardo, como um pesadelo, experiência terrível. É com este outro que eu fraternizo. Breve, em Val das Palmas, o país que não se parece a nenhum outro, irei conversá-lo. Ele: "Benvindo, Benvindo, porque chegaste vivo a este dia! " Eu: "Salve, irmão mar, bem sabia que me havias de abraçar". Sou um homem liberto! Agora e aqui, sou um homem liberto. Compreendem o que isto significa? Oh é imensamente grande - é a vitória, a vitória de um homem novo sobre as ruínas de um homem velho! Posso - eu posso - dizer não a todos os enganos, a todas as loucuras da Cidade Grande, e rir à face dos fetiches de outrora. Eu posso dizer ao Sonho: "Vai-te, sórdido, não mais te reconheço". Ou: "Vem, estende-te a meu lado" Ah, eu sou, enfim!

 

      VISÃO? PRESSENTIMENTO? Intuição do meu destino? Ou fantasmagoria da alma exaltada, do corpo cansado, na hora cálida? Foi quando a diligência deixou a estrada real e começou a cortar pelo atalho, no bosque espesso... Museu? Sala de casa senhorial, um castelo talvez. Figuras esculturais de dimensões várias e várias formas, dispostas em aparente desordem ao longo das paredes. Estava num atelier. Não me admirei, imediatamente me dispus – força desconhecida a tal me compelia – a trabalhar um pesado toro de madeira. Possuído de élan nunca sentido, eu me dizia: “Arrancarei desta matéria bruta uma obra de arte” . Modelarei um torso. E será o que de perfeito se realizou até hoje no mundo!”. Sábias, as mãos vibravam golpes, e o volume de uma cabeça surgia, que me agradava. Novos golpes, e simétricos busto e braços se formavam. Alguns golpes ainda, e a superfície curva do ventre se plasmava. Afastei-me para contemplar. Não; não era aquilo. Algo essencial faltava para uma obra de arte. Não fixara senão o contorno, o aspecto exterior. Numa intuição realizei: a alma. Era a alma! De novo me aproximei da massa inerte. Imprimir-lhe-ia a centelha divina, animaria com o sopro imortal da vida todas as suas fibras – e resolutamente lutei e relutei. Ilusória ambição. Eu buscava o impossível! Louco de raiva, senhor da mesma força com que porfiara realizá-lo, aniquilei o torso de madeira. Liberto, aliviado, rolei no tapete. E, sem transição, me vi andando ao acaso na perspectiva de uma avenida pavimentada de arabescos e marginada de arranha-céus de um só lado. Ninguém, nem uma face humana. Não era uma cidade? Encaminhando-me para a margem sem construções, compreendi que estava à beira de um abismo; temerariamente me inclinei; não era abismo, era o infinito! Fitando-o, lembrei-me dos versos de um poeta querido; vão esforço; nem mesmo o sentido reconstituía. Não importava. Já agora uma pérola negra, de grandeza nunca vista, luzia no infinito. Luzia no infinito e havia milênios esperava por mim para que entrasse na sua posse. Lá estava, lá estava! Fitei um instante o espaço, cerrei os olhos, e audazmente me atirei. Miríades de estrelas de um brilho triunfal povoavam a região sem limites, enquanto eu transpunha com a velocidade de um aerólito. Lá estava, lá estava a minha pérola negra! Abruptamente, o milagre cessou; os astros foram diminuindo de número e grandeza, eclipsando-se, fazendo-se em pouco tempo uma treva de primeira noite do mundo. Perdi-me nessa noite escuríssima. Quando me libertei, tinha o espírito exausto e estava na eminência de um penedo em mar alto. Asas no horizonte longínquo. Moça, a manhã despia o véu das águas, acordava em rosa e prata – mas não acordava para mim. Um sentimento de culpa me oprimia. Eu cometera um pecado. Pecado que não se comete impunemente: EU HAVIA DESTRUÍDO ALGO, E FAZENDO-O, AO MESMO TEMPO ME MUTILARA – A MIM MESMO ME MUTILARA. Nem ao menos me era dado projetar um pouco de luz sobre o meu sofrimento! E arrepender-me, e chorar – ó Deus. Inútil consolo, os versos rebeldes de há pouco me acudiam nítidos aos lábios: “A dor é constante, indefinível, negra; e tem a natureza do infinito”. E tem a natureza do infinito ... Repetindo-os melancolicamente, para sempre ali devia eu ficar! Foi exatamente isto, eu lembro, quando a diligência deixou a estrada real e começou a cortar pelo atalho, no bosque espesso ... Visão? Pressentimento? Intuição do meu destino? Ou fantasmagoria da alma exaltada, do corpo cansado, na hora cálida?

 

     PALMAS, EI-LAS, EI-LAS, AS PRIMEIRAS! Não tardarei a divisar, entre montanhas as ameias do Castelo. Foi o primeiro mistério da minha vida. Lembro: lá penetrei no dia da morte da velhinha a quem chamavam com reverência a condessa. Eu era um rapazelho, mas aqueles corredores longos de muros assombrados e tetos altíssimos, aqueles salões onde os passos ressoavam como num túmulo, encheram-me de espanto, de comovido, temeroso respeito. Oh, se lembro! Cada coisa ocupava o seu lugar solenemente. Hoje compreendo; era o pretérito, era a história, era o tempo cristalizado em torno dos objetos, corporificado na matéria dos objetos mesmos, e estes a travar com suas formas frágeis como escudo uma luta silente, contra os intrusos defendendo a sua impossível imortalidade. Que me recriminavam aqueles rostos severos de outro século, na prisão dourada das molduras? Vi-me de corpo inteiro na água estagnada de um espelho e tive medo, fugi. Depois foi a vez do conde. Não tardou em juntar-se àquela companheira de uma existência, lá revertem ao pó na igreja, sob uma lápide onde apenas se vê uma cruz e datas. Fora importante , homem do mundo e de paixões . Um dia abdicou de tudo, sem uma queixa, uma palavra, só com o seu orgulho. Tornei ao Castelo, algum tempo depois desta morte, e então retrocedi da porta. Que angústia nos objetos abandonados em desordem! A Morte instalara ali a sua morada ou pelo menos quisera deixar evidentes as marcas de sua passagem. Dir-se-ia que o aviso de um castigo, da peste, da ameaça de uma vindita, chegara por um mensageiro fiel ao conhecimento dos habitantes daquela casa, e que estes, resignando-se a levar consigo aquilo que cada homem pode reter, haviam deixado tudo na fuga precipitada...

 

  

        PALMAS, NOVAS PALMAS. Lá estão, ei-los, os benfazejos leques! Que hálito perfumado é este? De onde sopra esta brisa, suave como carícia materna? É Val das Palmas que começa a entregar-se, que vem ao meu encontro. Val de Palmas, o país que não se parece a nenhum outro, a terra de onde se avista o Sol primeiro. O estrangeiro, pode o estrangeiro admirá-la; será sempre como pátria de eleição; quanto a mim, tenho raízes mergulhadas naquele solo que me inspiram por ele uma paixão que só eu posso compreender. Vivo neste momento essa vivência secular. Ali, no seio adusto da terra, tenho sepultos os meus mortos, ali repousarei um dia o inquieto coração... Foi ali que me desgarrei , enveredando ínvios caminhos; foi ali que enfermei da doença de tudo querer tocar com as mãos, estas mãos que nada entendem do ofício de acariciar; foi ali que me marcou o fatal vício de sonhar. Logo me encontrarei entre rostos amigos. Leo, o jovem do farol, sobrinho do guarda-mor, com sua fisionomia selvagem e corpo desengonçado em formação. Oh adolescência, plena de intuições, visionárias, rebeldias! Te compreendo, porque te vivi um dia. Talvez me interrogues: “Em que devo acreditar?” Já agora não te falarei por enigmas. Francamente te direi: “Acredite em você mesmo”. Talvez me acuse. Difícil idade, linda idade. Talvez me diga não ter eu vivido perigosamente até o fim. Dir-lhe-ei que parta e vá até aonde eu não fui! Não mais verei o negro Afonso. Que falta há de fazer para as rosas do conde, ele que as desvelava no jardim com tais cuidados, com mãos de amante. Tu humilde, de quem valia cada palavra uma moeda de ouro; tu, obscuro filho da terra, argila, raiz, sabedoria viva. Morreu. E eu que me habituara a julgar eterno o negro Afonso. Ele existia com o Sol, o vento, os pássaros, a chuva, com todas as coisas, com as estações. Quando a primavera chegava, quando ela era os ventos enervantes, fecundando as plantas; o voejar dionisíaco dos insetos e dos pássaros no ar azul; o brilho das pedras umedecidas e iluminadas, ele nascia de novo, via o mundo pela primeira vez. E me presenteou uma vez, laconicamente, com esta linda verdade: “O mundo está cheio de mortos”. Estenderei a mão a Pedro, o marujo, aquela criatura que nem todos entendem, que muitos não amam, na sua poderosa e primária alegria de viver, tatuagens pelos braços e ombros, onde se conta a história das mulheres que amou sob todos os céus e da suprema, da impossível, da que jamais quis ser sua. Verei Katia, a filho do russo Estevão, florista do mercado, em cujas faces de maçãs salientes, gestos e voz, contra o fundo matinal das flores do pai, descortino em caleidoscópio, torres bizantinas de catedrais, nevadas estepes desnudas, e o labor do servo entre medas de trigo. Darei uma moeda à louca da várzea, amiga de crianças e animais, ovelha inofensiva a vagar pelas ruas em busca do filho e do marido, em busca de si mesma....

 

    LÁ APONTAM OS PRIMEIROS TELHADOS. Ali vivem eles, longe do desvario e da vanglória, os meus amigos. Que círculo admirável. Pequenos, sim, mas luminosos. Eu lhes falarei; eles me falarão; e podemos estar certos de que as palavras que nós dissermos não escondem os pensamentos. Sou o mais feliz dos mortais por ter amigos tão belos. Mab, a alegre. Mab a organista da igreja, compositora ela mesma, feliz com a sua arte, ofício de todas as horas... E Maria, em que a paixão tornou aqueles olhos tão grandes, olhos no qual arde ainda e sempre o louco amor. Conheceu um dia alguém . Apaixonada, amou de um amor que este mundo não comporta. O que sofreu no abandono! Ainda encontrou forças para lutar, a louca esperança embalou-a algum tempo. Logo rendeu-se, definhou, anelou a morte, que não a quis. Sobreviveu; mas outra pessoa. Agora é essa meiga criatura de penumbra, que se espanta ao cair de uma folha; Maria, nascida talvez para o claustro, para o silêncio, para o convívio das coisas castas e tranquilas, cuja presença me faz bem, me torna prisioneiro. E o irmão, temperamento arredio no árduo estudo entre livros, em que supus muito tempo – ai, como vivemos separados! Um fruto seco de fim de raça, e que um dia foi para mim revelação surpreendente: “Apenas”, confesso-lhe, “se não fora o recurso da imaginação, não sei como poderia viver”. Alma feita de pudores e delicadezas, afasta-se, abstém-se da luta imediata, mas na sua esquivança não deixa de participar, amoroso de quanto é vivo, e o sentimento trágico do homem. Um realista que não transige, que não faz compromissos com a farsa grosseira nem com a piedosa mentira.

 

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

 

        ESTA É A ÚLTIMA VOLTA DO CAMINHO... Já a diligência se aproxima da praça. Conheço, conheço esse tatalar de asas: são os pombos do pombal gótico do Castelo, que voavam no céu da minha infância. Lá descem em revoada sobre as árvores do parque. Cai a tarde, docemente, sobre Val das Palmas... Chego. Meus pés pisam o velho solo. Que se passa em mim? Que é isto, que se passa em mim? Que é isto, que se passa em mim? Estremece meu ser a um intenso sentimento doloroso. Sinto que não estava preparado para este encontro. É bela, violentamente bela, esta revelação. E sobem-me aos olhos lágrimas – de alegria, lágrimas de imortal alegria.

 

Pag

 06/06

cmp

bottom of page