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Preto velho

   “A escravidão –  observa Machado de Assis no conto Pai contra Mãe –  levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições.”

    Passou a escravidão; sobreviveram as superstições, as histórias, as lendas. E ainda restam remanescentes, que logo desaparecerão. É bom ouvi-los, enquanto não silenciam, enquanto cruzam um momento aos nossos olhos.

 

    Ia de automóvel para Nova Friburgo. Tinha deixado atrás Itaboraí, a terra do Dr. Macedo, o da Moreninha, e subia a serra, depois de beber café com mãe-benta em Cachoeiras de Macacu.

    O frescor da manhã cheirando a mato e o encachoeirar das águas do Macacu, entre seixos, punha os viajantes de bom humor. Quando se é feliz, o citadino egoísta que há em nós esconde-se envergonhado. E a gente se humaniza, tem veleidades de ternura passageira.

    Na serra, a estrada que leva a Nova Friburgo é escavada a largos trechos na rocha viva, muralhas de arrimo a cada momento, passagem talvez tão estreita quanto nos dias em que a primeira leva de colonizadores a pisaram…

 

    Vagaroso, o homem caminhava no chão pedregoso apoiado num bordão.

    “Suba pra cá, preto velho!”

    Ele parou, voltando a cabeça toda branca.

    “Louvado seja Nosso Sinhô, meu branco!”

    Acendi o cigarro de palha dele. Não ia para muito longe, morava em Muri. Apesar dos noventa e alguns anos andava aquela caminhada todos os dias. Vida de pobre. Que fazia para viver tanto?  –  perguntei.

      “Não faço, nunca fiz mal a ninguém, meu branco. É coisa que Deus Nosso Sinhô não sofre, esteje certo.”

    Falando sempre, disse-me que nascera nas terras do Barão de Aquino, no Sumidouro, onde se criara. E elogiou o barão. Não gostava de bater em escravo, não sinhô. Quem quisesse castigar fosse fazer pra longe da vista dele. Bom homem, o barão, meu branco!

    Eu notara, através dos rasgos da camisa de algodãozinho, umas cicatrizes violentas. Perguntei com jeito que era aquilo.

    “Qu’é isso, meu branco!” –  repetiu o velho, abanando a cabeça e falando longamente.

  “... Intão veio otro capataz. Cruz credo, home ruim como aquilo nunca vi! Inté qui eu nem era lerdo, não sinhô. Hoje em dia tô um caco véio, naqueles tempo era um bocado de nêgo. Ô xentes, né qui o diacho do home deu de impilicá comigo. Tomei surra uma vez, duas, não guentei não sinhô. Eu não.

    Fugi. Ah, fugi. Quem diz qu’ia ficá tomando surra toda-vida? E vim descendo por esse mato de serra; com três dia ‘stava perto de Cantagalo. Aí topei com um carvoêro. Parece qui istô vendo diante dos óio. Um “balão” pra mais de trinta pé ‘stava fumaçando qui era uma beleza. “– Êta, carvãozinho bom, meu patrão!” fui dizendo só pra agradá o tal home, qui ‘stava jantando na porta do rancho. Falei com ele, e tal, me tratô bem, inté me deu da janta dele.

    “Stô arranjado, eu pensei. Com pouco, o “balão” pegô a fumaça azulado. Carvão ‘stava prontinho. Me ofereci prá abafá. Mas quá, tinhoso ‘stava tentando ele. De repente, né qui o home entra no rancho e sai de lá de dentro me aprontando uma espingarda? “– Nêgo safado, esteje preso!” “– Que é isso, patrãozinho?” “– É isso mesmo, negô fujão. E toca pra frente!”

    Ele queria pegar uns cobre me entregando pras autoridade.

  Ah! meu branco, vi qui ‘stava perdido, virei bicho. Pedi a proteção de meu anjo da guarda, dei um salto pra riba dele e me defendi. O peste estrebuchou, foi num átimo.

    Mas fiz besteira. Eu ‘stava nu. Que faço? pego na rôpa dele, visto, vou pra Cantagalo. Aí descobriro o morto, me prendêro, fui a júri e a sentência do doutô juiz me condenô à morte. Sim sinhô `morte. Mas o Imperador – aquilo não era home, era um santo – trocô a pena de morte pelos açoite.

    Ah, quasi morro, meu branco. Viu só os lanho? Mas ‘stava sarando pra tomá o restante, quando veio a República. Intão o doutô juiz me mandô chamá e explicô qui eu não ia cumpri mais pena. “– O quê, seu doutô!” E como de fato: na nova lei não havia castigo de corpo. “– Vá com Deus, e tenha juízo!” Inda parece qui vejo o doutô juiz me falá…

   Eu ‘stava livre.”

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 08/09

CICLO DA ESCRAVIDÃO

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