Xavier Placer
Túmulo acorrentado
Cemitérios do interior, humildes cemitérios, que situados em elevações se avistam da estrada antes de alcançar a praça das pequenas cidades – retalhos de pasto que o muro caiado de branco limita em retângulo, e onde quedou aprisionada uma ou outra paineira.
Portão azul. À entrada, destroçados túmulos, anjos de mármore sobre oratórios, datas que os anos vão apagando no ermo.
Epitáfios comoventes:
AQUI DESCANSA,
VIVA EM DEUS,
M,
Justus ut palma florebit
Os mais são sepulturas rasas coberta de capim. Flores sem nome repontam. Esvoaçam pássaros. E os mortos, anônimos.
Paz não houve no túmulo daquela mulher que se pode ver em óleo antigo: um par de frios olhos azuis em rosto oval, que devia ser pálido, e era belo, estranho e belo.
Ainda hoje, tantos anos passados, contam-se nas Duas Barras as façanhas dessa criatura – e o seu túmulo acorrentado, na parte velha do cemitério, é o testemunho da história.
Era tirana, e deleitava-se em saber-se temida. Tudo na fazenda corria na mais perfeita ordem. Uma fábrica de atividades: a melhor fazenda nas adjacências. Mas, ela era incontentável, preparava ciladas, espionava, não perdoava a menor falta. Logo nos primeiros tempos de casada, como surpreendesse uma cria furtando laranjas no pomar, mandou amarrar o moleque, e ela própria, a machadinha, decepou-lhe a mão.
O marido cometeu a imprudência de elogiar um dia a beleza de uma mucama que passava no pátio. Ela concordou; à noite mandou buscar a negrinha, untou-lhe o corpo de melado, amarrou-a num formigueiro. No pasto escuro, pela noite a dentro, os gritos de dor cortavam o coração. Quem ousaria socorrê-la? O próprio marido – era um desses caracteres passivos, incapaz e indolente – não ousava intrometer-se. Pela manhã a negrinha apareceu inchada que só um bicho, os olhos comidos de meter medo.
E mais cruel se fazia.
O caso do escravo foi dos mais terríveis: mandou ferrá-lo nos pés e mãos, obrigou outro a cavalga-lo, de relho em punho, até que o miserável expirou.
Deu para ter uns ataques esquisitos, ficava rígida, espumava. Não era já a mesma mulher. Passava os dias zanzando pela casa, falando sozinha, dando gritos lancinantes, que a queriam matar. E tornara-se monstruosamente feia, uma bruxa.
Num daqueles ataque acabou.
Ninguém a chorou.
Sepultaram-na no mesmo dia, à noite; seu cadáver exalava um cheiro intolerável,perceptível à distância.
Logo no seu túmulo começaram a ouvir ruídos. Não eram gemidos humanos, era uma ronqueira de animal feroz. A alma dela porfiando por libertar-se.
Um dia a lousa apareceu erguida. Repuseram-na; tornou a deslocar-se. E a ronqueira continuava…
Então rodearam o túmulo de corrente, grossas correntes de bronze em negros elos, que, aprisionando o seu corpo, aprisiona para toda vida, ali, a alma pecadora.
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