Xavier Placer
Uma Capela entre verdes
Contornando as montanhas da Serra de São Sebastião chega-se, por estrada sobre pirambeiras, a uma pequena cidade. Esta, que tem nome igual ao da Serra, mais o detalhe de sua posição iminente – São Sebastião do Alto – é cidadezinha típica do nosso interior.
Logo à entrada comprida rua em ladeira, cujas casas, à face do passeio, baixas e cobertas de telha-canal, agridem esquadrias em azul ou vermelho. De cada lado, em meio a esses estabelecimentos que vendem de tudo – matutos de pé no chão e animais amarrados à porta – descobre-se a farmácia, o cartório, a barbearia, uma oficina mecânica, a placa minúscula do Posto de Saúde e o letreiro enorme do único partido político local.
No extremo, a casa-grande de fazenda servindo agora de Prefeitura. à direita, numa rampa suave, alveja a matriz de uma só torre e grades prateadas.
Aquela população de quinze mil almas não têm pastor.
Aos domingos um padre viaja de Cordeiro ou Cantagalo, e celebra missa às dez horas. A cerimônia é um acontecimento; a igreja regurgita. Ao fim do ato o largo se anima, inclusive de gente vinda de longe, do único distrito, Valão do Barro.
Aí, nessas paragens entre montanhas, há muitos anos fato ocorreu…
Certa tarde o empregado de fazenda, dando batida pelas brenhas à procura de uma besta, desceu ao fundo do despenhadeiro – onde esperava encontrar morto o animal – na estrada antiga. Era um preto, moço e forte, inimizado com muitos pelo feitio brigão. Ei-lo que surge, aos gritos, anunciando horrível descoberta.
Anoitecia. Curiosos acorreram ao local do crime; só alguns decididos porém empreenderam a difícil descida, e grande foi o espanto: a vítima, menina de seus dez anos, era filha do capataz da Fazenda dos Ipês. O uniforme escolar estava em frangalhos, havia sido um atentado sexual.
A polícia deteve o denunciante, que se havia ocultado. Nos interrogatórios explicou-se confusamente, emaranhou-se em contradições, e da suspeita concluíram pela certeza: estava ali o criminoso.
Então o povo se irou, amotinou-se à porta da cadeia, queria linchá-lo.
Foi redobrada a vigilância ao prisioneiro. Quando a indignação serenou, as autoridades providenciaram a reconstituição do crime.
Era de manhã; delegado, escribas, um jornalista, dois chefes políticos, curiosos, rumou tudo para o local. Cabo e três soldados – todo o destacamento – rompiam à frente com o acusado em algemas.
Começou a reconstituição. Estavam a dois passos do despenhadeiro. A penedia negra, vertical, cobria-se aqui e ali de cactos espinhentos. Lá embaixo, no abismo, a copa das árvores era um tapete verde-garrafa prateado pelas folhas de embaúba.
“Valha-me, Santa Irene!”
Todos se voltaram. E viram-no, ao acusado, rompido os ferros, de braços abertos, lançar-se no espaço como um pássaro – enorme e ágil pássaro negro.
Desceram os soldados a capturá-lo, vivo ou morto.
Não o acharam.
Dias a fio bateram a mata – nenhum vestígio. Na cela encontrou-se um quadradinho de vidro rachado, representando Santa Irene. No verso do “registro” desentranhou-se da garatuja um protesto de inocência e uma súplica à Santa, que salvasse “aquele desgraçado filho de Deus”.
O carcereiro esclareceu detalhes. Muitas noites vira o pobre ajoelhado na laje, ao pé da imagem, rezando alto; tão alto, que devia fazê-lo calar. E ele obedecia com humildade. às vezes chorava. Mas nunca dissera nada sobre a sua inocência.
Vivia ainda a cidade a estranha fuga, interpretando-a sobrenaturalmente, quando desconhecido se apresentou à Delegacia. Queria falar em particular ao Delegado. Foi recebido; estava ali o verdadeiro criminoso que se entregava à justiça.
O milagre era perfeito.
O tempo esfumou a realidade en lenda e o sentimento inspirou uma devoção: o culto a Santa Irene.
Diz-que meio século depois um preto velho apareceu na cidade, meteu-se numa cabana de ramos, no famoso lugar – conhecido desde então pelo nome de Santa Irene – e, juntando pedras, ergueu com suas mãos uma capelinha àquela santa: era o verdadeiro acusado.
Hoje a obra primitiva foi substituída por outra.
E ali está, no fundo do despenhadeiro, agora mais acessível, aquela alva capela entre verdes! Uma nascente, na rocha, murmura a sua água virgem, remédio para todos os males – os da alma também – desde que se tenha limpo o coração.
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