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NOITE  BRASILEIRA

                  Essa criança é que chamavam de Macunaíma.

 

                                     Mario de Andrade, In Macunaíma.

 

ABRO a janela. A noite é um escândalo de luzes. Na abóbada negra ardem as estrelas, a Via-Láctea é um rastro de prata pelo espaço abismal. Lá anda a Lua a passear o seu São Jorge a cavalo matando o Dragão à lança… Lá está o Cruzeiro, lá estão as Três Marias…

    Estou descobrindo a noite brasileira. Quanto tempo me foi preciso! É uma tirana a cidade; sem o pressentirmos, defrauda-nos miseravelmente. Como se está bem aqui. Noite amiga, noite da cidade pequena entre montanhas, deixa-me contemplar-te, que eu quero te aspirar, ouvir, possuir de todas as formas, por todos os sentidos. Quero identificar-me contigo, ó noite dos trópicos, voluptuosa noite brasileira!

 

QUE digo? Este silêncio, esta paz é pura aparência. Que a noite é tão dinâmica quanto o dia, e talvez mais. Apenas a noite é tímida, cheia de pudor é a noite. Este cheiro vem da mata… Chega-me o murmúrio do vento nas folhas das palmeiras, à encosta do morro. Um ruído mais forte… Eu sei, foi o milagre que se realizou – uma semente desprendeu-se do fruto entreaberto, fecundando a Terra-Mãe, e a Natureza inteira estremeceu à íntima alegria criadora.

    Misteriosa, misteriosa como um ovo, assim fecunda é a noite… Que de labor obscuro não vai por esses ermos e gerais, império da saúva e do cupim; por essas serras de ferro e ouro, vestidas de samambaia, à espera dos novos bandeirantes; por esses rios-mares cujos HP dariam para mover universos; por essas florestas, virgens de presença humana, desde o dia do Gênesis; por esse mundão, enfim, aonde Deus não andou. Luzinha vermelha piscando na treva… Certamente é o Saci, na sua única perna, a implorar fogo para o cachimbo ao caminhante noturno. Mas esse tilintar surdo de cadeias… Alguma rês esguritada? Certo é a mula-sem-cabeça, a mulher do padre, a cumprir seu fadário, castigo de feio pecado… Senhora da Aparecida, perdão para o pobre de Cristo!

   E em meio a tanta riqueza, só o filho da terra é miserável. A esta hora, numa tapera à beira de um riacho, Jeca Tatu e Rosinha Poca, alimentados à farinha, entre trapos, procriam a futura raça do Brasil. Vejo crianças seminuas, de ventres enormes, crescendo roídas pela verminose. Têm seis, sete anos; dir-se-ia que têm três ou quatro. Felizes os que morrem anjinhos! Vejo caboclos analfabetos, em reúnas apertadas, representando inconscientes a comédia do voto livre. “Nóis votemo em “seu” coroné pruque ele é nosso protetô”.  Explorados, e ainda são agradecidos! Olhai os rostos amarelos; todos impaludados. E as mulheres, máquinas de filho, no eito, de sol a sol, para que os filhos do coronel farreiem na capital – futuros chicanistas do direito, charlatões da medicina… Doutores! E as cabrochinhas, se não se guardarem, servirão para a luxúria dos meninos bonitos. Vejo a ignorância, levando ao fanatismo, endoidando populações inteiras, atrás de taumaturgos de camisolão ou sotaina. Vejo a indolência agravando a pobreza, tornando-se em miséria, descendo ao último grau… Cachaça, cachaça, cachaça para esquecer! Onde está, Euclides, onde está o teu sertanejo, “antes de tudo, um forte” ?

 

ESTRELA cadente riscando o céu… Apagou-se. Não; é um sacrilégio manchar de pessimismo a beleza desta noite. Faz de conta, por um instante, que o mal foi banido do mundo. A noite cobre tudo. Somos de ontem. Um dia venceremos a feracidade desta natureza sem igual, comungaremos com ela, ela conosco; um dia nossos oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados serão habitáveis, e não constituiremos cinquenta, mas quinhentos milhões sobre a terra generosa. A extrema juventude é o nosso mal; Macunaíma, herói sem nenhum caráter. Ainda não nos achamos, como havemos de ser senhores? Um dia, um dia! Então não temos o Porque-me-ufanismo e a nossa Proverbial Cordialidade? Não temos o Futebol e o Carnaval? Não somos todos doutores e oradores natos? Além do que, Deus é brasileiro!

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