top of page

O U R O   P R E T O

                Aqui outrora retumbaram hinos.

                           Raymundo Correa, Saudades, In Poesias.

 

NA penumbra do quarto de hotel, de cortinas descidas, acordo tarde ao som de sinos. Suspendo a janela em guilhotina para saudar a manhã.

    Delicioso panorama! Emoldurando-se no retângulo da janela, todo um trecho ensolarado da cidade vem oferecer-me a visão de torres, aos pares, crescendo para o céu acima da linha regular do telhario, ou solidamente pousados no corpo das igrejas; e fundos de velhas casas , unidas umas às outras, de beirais salientes, penduradas em declives; e lá adiante, numa suave inclinação verdoenga, uma ponte com qualquer coisa que, a princípio, na distância, não distingo o que seja, mas logo identifico como um cruzeiro de pedra… Ei-la, a lendária Ouro Preto, que ontem, quando cheguei, negava entregar-se, embuçada na noite e na chuva! Ei-la, a Vila Rica dos inconfidentes, dos vice-reis generais, do Aleijadinho, do amor desgraçado de Dirceu e Marília, a cidade do ouro!

    Embevecido, arrebatado, fico-me a murmurar: “Ouro Preto! Ouro Preto!”, possuído de uma emoção que não sei penetrar, que não quisera mesmo penetrar para não dissolver o encanto deste momento, mas apenas vivê-la, deliciar-me nela, o que meu espírito concentra nas sílabas cerradas, encardidas como antigas fachadas, dessas mágicas palavras: “Ouro Preto! Ouro Preto!”

 

MAS não é de uma janela de hotel que se conhece uma cidade, e muito menos Ouro Preto, de tão funda perspectiva histórica. Tomado o café, apresso-me em ver, e mais que em ver, tocar, aspirar de perto “a urbs gloriosa e pobre”.

     – Moço, ó moço, quer que lhe mostre a cidade? oferece-se um mineirinho de pé no chão.

     – Você é cicerone?

     – Como ?

     – Não, não. Obrigado, amigo.

      A aleluia dos sinos continua na manhã de domingo… Foi boa a chuva de ontem, lavou a cidade. Onde? Conheço, conheço este cheiro que a brisa me traz. De que? Conheço-o. Lenha. Sim lenha queimando em algum fogão, na larga cozinha de um desses sobrados de sacada de pedra-sabão, trabalhada como renda… Maravilhosa manhã! Para passeá-la, só para isto, merecia viajar quilômetros… Eis o prazer tantos dias sonhado. Agora sou um turista, entre muitos, ora perdendo-me nos becos, ora subindo e descendo ruelas de tortuoso empedramento, sonoro sob os pés, que de polido e escorregadio me obriga em certos trechos a buscar a calçada para me agarrar às paredes de velhas pedras ásperas, patinadas pelo tempo. Na verdade é não ter imaginação, ou lê-la à maneira daqueles cujos prazeres são apreciáveis apenas pelo que lhes custam em dinheiro, contratar um guia para estas coisas. O delicioso é sair assim, à toa, ao léu, sem roteiro, fazendo descobertas e topando imprevistos. Aqui parando em frente a um oratório abandonado ou a um chafariz para olhar um par de golfinhos ou decifrar uma inscrição do tempo do Conde de Bobadela; ali deter um desconhecido para perguntar onde fica a “Casa dos Contos”; mais abaixo ou mais acima entrar numa igreja, admirar ícones e tetos, altares e púlpitos, sem esquecer de dar um salto à sacristia; enfim, impregnar-se de todas as manifestações de arte barroca do Aleijadinho e seus discípulos, arte a um tempo venerável e pícara, e só ao fim – detalhe ocioso – saber que esta se chama a igreja de Nossa Senhora do Pilar, a matriz; aquela de Santa Efigênia do Alto da Cruz; aqueloutra do Senhor Bom Jesus do Matosinho. Curioso mas onde o povo desta cidade? Janelas desertas, silêncio; lá está um cão naquela soleira, lá vai um soldado caminhando sem pressa na sua farda cáqui. Por aqui andou o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Daqui, e não do Ipiranga, com tantos anos de atraso, partiria o grito de “Independência ou Morte”. Sonhos… Cinzas… Comércio nenhum. A fita que se exibe no cinema modesto já a vi há mais de um ano no Rio. Cidade morta. Vivo aqui, só o passado. Nas fisionomias, nas próprias fisionomias, há um ar de século XVIII, que elas não sabem. Nas noites de lua, o espetáculo desta cidade-relíquia deve ser fantástico. Bem o sentiu Bilac no terceto famoso:

 

Como uma procissão espectral que se move…

Dobra o sino… Soluça um verso de Dirceu…

Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove.

 

      – JABUTICABA! Jabuticaba! É da boa!

       Detenho o tropeiro que desce a ladeira tangendo um burrico. Inclino-me para uma das cangalhas; está cheia de jabuticabas enormes, de casca negra e reluzente.

       – E como é isso, amigo?

        – Um cruzeiro o caneco. Leve, que é puro mel, meu senhor.

    Meio dia. Então retorno ao hotel, saturado de passado, cansado – cansado mas feliz – estalando jabuticabas entre os dentes…


 

 

 


 

1944 – 1950

Pag

 36/37

cmp

bottom of page